domingo, 12 de março de 2017

Pensatas de domingo. Marx, Engels, Bakunin e as lições da Comuna de Paris

Trecho do texto publicado em Marxismo 21 originalmente como “Reforma e/ou revolução" de André Vianna Dantas    
    
O século XIX testemunhou, com Marx e Engels, a inauguração de uma nova perspectiva no entendimento da origem e da função do Estado. A tradição liberal de até então –ou mesmo desde antes, a partir de Maquiavel–, considerou sempre o Estado como poder exterior, acima dos interesses particulares e, em última análise, indispensável à vida social, fosse para a resolução de conflitos entre os homens, portadores de uma suposta “natureza má” (Maquiavel), fosse para a garantia de direitos ditos “naturais”, como o de propriedade (Locke), fosse ainda em nome da vontade geral e do desenvolvimento pleno dos homens em relação ao seu estado de natureza (Rousseau) ou, por fim, como representação máxima do desenvolvimento alcançado pelo “Espírito”, grau maior da liberdade atingida pela humanidade (Hegel).
  
Marx e Engels romperão com esta tradição e afirmarão categoricamente que o Estado é produto ineliminável da sociedade de classes, produto das entranhas deste conflito, um Estado de classe. Negavam assim, portanto, a universalidade que Hegel lhe atribuía e, sobretudo, o caráter de mediação isenta que os liberais em peso lhe conferiram.
 
A despeito disso, tornou-se lugar comum mais recentemente atribuir aos pensadores alemães concepções estreitas de Estado e Revolução, respectivamente nada mais do que um “comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa como um todo” e tomada súbita e violenta do Estado supostamente entendido como mero aparelho. Teria cabido, então, a Gramsci a acurada percepção da “ampliação” do Estado e a consequente “atualização”, por assim dizer, do conceito de revolução. Evidentemente não podemos concordar inteiramente com tal perspectiva. A “ampliação” conceitual de fato promovida por Gramsci não está na relação direta da suposta estreiteza de Marx e Engels. A contribuição do pensador italiano, diga-se de passagem, quando deturpada, tem sugerido a abdicação da Revolução pela conquista lenta e gradual de uma hegemonia esvaziada do seu conteúdo e que tem servido de elogio às regras do jogo político da burguesia. No entanto, o grande mérito do conceito gramsciano de “Estado integral” é mostrar exatamente o inverso: de um dado momento do desenvolvimento do Estado moderno em diante, a luta anticapitalista se tornara mais difícil justamente porque o poder burguês deixara de se basear apenas, ou em maior medida, na coerção. O poder de dominação da burguesia se tornara sobejamente mais “integral” do que até então fora e, portanto, precisaria ser combatido à altura. Eis o importante alerta que Gramsci nos faz. Supomos, assim,que as muitas imprecisões, equívocos e oportunismos políticos que teem sido cometidos em nome de Gramsci nas últimas décadas e, claro, à revelia de sua obra e contra a sua história, teem tido sua fonte constante e incessante nessa espécie de “mito fundador” da “estreiteza” se Marx e Engels.

Marx, Engels e Gramsci não se prestam às reduções que lhes estão sendo imputadas, acreditamos. Uma apreciação um pouco mais detida sobretudo dos textos escritos por Marx e Engels na virada da década de 1840, torna patente o impacto que a derrota do movimento revolucionário em 1848, na França especialmente, exerceu sobre os dois, dando início a um reexame sistemático do que vinham pensando e escrevendo, juntos ou individualmente. A partir de então, e especialmente após a experiência da “Comuna de Paris”, em 1871, ficou evidenciada para ambos a complexidade do papel do Estado na manutenção da dominação de classes, bem como a necessária sofisticação da luta e inovação das táticas por parte dos trabalhadores, face à nova situação que se apresentava. Senão, vejamos: já em 1851, em seu “As lutas de classe na França de 1848 a 1850”, Marx constrói uma análise cuidadosa dos embates extra e intraclasses, entre burguesia e proletariado, mais flagrantemente expostos após a derrubada da monarquia de Luís Felipe, em fevereiro de 1848, e a posterior subida ao poder de Luís Bonaparte –futuro Napoleão III– no mesmo ano.

Diante das vacilações da pequena burguesia, da fragilidade política do capital industrial, do protagonismo da burguesia financeira e dos vazios de poder que esta luta entre frações da classe burguesa promovera, Marx consegue captar a relativa autonomização da máquina do Estado em relação às mesmas classes que o disputavam, identificando com clareza mudanças substanciais no que até então concebera. Isto não significou, porém, a negação da condição de classe desse Estado, como apontara no Manifesto, nem tampouco uma mudança de interpretação quanto ao caráter não exterior do Estado em relação à divisão da sociedade em classes. Nos diz Marx: “Ao transformar o seu lugar de morte em lugar do nascimento da república burguesa, o proletariado obrigou-a ao mesmo tempo a manifestar-se na sua forma pura como Estado, cujo objetivo confesso é eternizar a dominação do capital e a escravidão do trabalho.”

Ainda um pouco antes, se quisermos nos remeter a uma obra do jovem Marx, poderemos identificar o momento primeiro em que Marx aponta este caráter não exterior. Em “Crítica à filosofia do direito de Hegel”, de 1843, contrariando o autor de “Fenomenologia do Espírito” (1807), afirma que o Estado, este sim, era o predicado da sociedade civil, e não o contrário. Tal perspectiva apontava para a necessidade de compreender a sociedade civil e somente assim chegar à compreensão do Estado e das contradições que o caracterizavam. Em 1852, dando prosseguimento à apreciação do agitado meado de século francês, em seu “18 brumário de Luís Bonaparte”, afirmou com todas as letras o pensador alemão: “Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, em vez de a destruir. Os partidos que lutaram alternadamente pela dominação, consideravam a tomada de posse desse imenso edifício do Estado como a presa principal do vencedor.” Como se vê, esta última afirmação talvez bastasse para dirimir as dúvidas sobre o verdadeiro alcance das concepções de Marx sobre o Estado. Embora o nomine como “máquina” –o que poderia sugerir uma compreensão restrita–, reconhece suficientemente a complexidade que o envolve para não apostar apenas em simples golpes de força.

Dito de outro modo: se constantemente, como fica elucidado no texto, as frações da classe burguesa em disputa se viram frustradas nos seus objetivos de dominação acreditando terem apanhado o lobo quando em verdade estavam se apossando apenas de sua pele, é, no mínimo, de se supor que o autor de “O Capital” estivesse considerando este alvo de cobiça da burguesia como algo muito além de um simples “comitê executivo”. Mas se no último trecho citado a análise recai sobre a burguesia, exclusivamente, tomemos uma outra passagem em que Marx repete, em essência, a mesma avaliação a partir da perspectiva do proletariado. E note-se que agora o contexto de análise é a Comuna de Paris, experiência exitosa ainda que efêmera, que permitiu conferir, num grau de concretude do real nunca antes experimentado pelos trabalhadores, a quem o Estado serve e por que ele precisa ser destruído pelo movimento revolucionário. Sentencia Marx: “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos”. Em suma, para Marx, e também para Engels, como veremos, o Estado é produto de relações sociais de dominação entre classes antagônicas. E dessa forma, a sua tomada súbita, violenta, embora em dado momento da luta revolucionária também faça parte do script, não pode representar, isoladamente, o fim das relações sociais de dominação que e o engendraram. Ato contínuo, embutida nesta concepção de Estado está a noção de revolução também como algo muito além da simples tomada do aparelho de Estado, pura e simplesmente. Marx e Engels nunca tiveram dúvida de que o melhor destino para o Estado, para o projeto comunista, era o lixo da História e, com ele, em paralelo, o consequente desaparecimento da sociedade de classes.

Este, inclusive, foi o cerne do encarniçado debate entre Marx e Bakunin na “I Internacional dos Trabalhadores”. Marx, ciente do imenso desafio, defendia a necessidade de uma transição, onde o poder concentrado nas mãos dos trabalhadores (Ditadura do Proletariado), teria a tarefa de desmontar os pilares de sustentação da sociedade de classes, anulando, assim, a razão de ser do Estado. Bakunin, ao contrário, crítico ferrenho de toda a forma de autoridade, propunha a extinção imediata do Estado. Para o primeiro, a extinção do Estado, por ser processual, figuraria como último ato da revolução. Para o outro, se constituía no ato de abertura do processo revolucionário. Embora reconheçamos a ausência aqui da voz de Bakunin a se defender, vale a citação de Marx, bastante ilustrativa e profícua para este debate, onde ele narra, com a ironia habitual, o desdobramento fatídico do “episódio de Lyon”, em 1870, quando os trabalhadores –dos quais um dos principais líderes era o mesmo Bakunin– se insurgiram e tomaram a prefeitura da cidade, tal como fariam um ano mais tarde os communards de Paris.

Bakunin instalou-se lá [na prefeitura da cidade]; então veio o momento crítico, o momento aguardado por muitos anos, quando Bakunin pôde levar a cabo o mais revolucionário ato que o mundo jamais vira –ele decretoua “Abolição do Estado”. Mas o Estado, na forma e natureza de dois camaradas da Guarda Nacional burguesa, deu uma geral na prefeitura e botou Bakunin para correr de volta para Genebra. Se formos em busca de Engels, veremos também o quão profundamente improcedente é a atribuição a este pensador de uma concepção restrita dos conceitos de Estado e Revolução, assim como um lugar excessivamente à sombra de Marx. Em “O Anti-Duhring” (1877), em ”A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (1884) e ainda numa série de cartas, prefácios e posfácios às reedições das obras de Marx, sobretudo após a morte deste, Engels deixa claramente registrado o seu entendimento sobre o tema. Assim como Marx, Engels percebe uma “certa independência momentânea” do Estado em períodos de equilíbrio da luta de classes. Tal como o seu conterrâneo e parceiro intelectual, refuta as interpretações que apontam a origem do Estado como fruto de um processo exterior às classes, isento de seus conflitos. Considera, ainda, na medida da imensa tarefa emancipatória reservada à classe trabalhadora, a extrema complexidade da luta contra o Estado e a sociedade de classes na modernidade, que deve se materializar na organização da classe revolucionária e na definição acertada das estratégias de sua luta revolucionária. Para este pensador, portanto. O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro

(...). É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento (...). Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes, não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. O caráter de classe do Estado, se nesse trecho ainda não aparece inteiramente explicitado, embora o conflito de classes que lhe dá origem se faça presente, revela-se na sequência, ainda na mesma obra. Vejamos: Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Engels avança ainda mais na compreensão da maior complexidade do Estado –e, por consequência, da luta que caberia aos trabalhadores por uma sociedade sem classes. De todos os textos que atestam este reexame conjuntural e uma consequente revisão das estratégias, talvez o mais célebre seja a “Introdução” à segunda edição alemã do texto de Marx.

As lutas de classe na França de 1848 a 1850, escrito em 1895, cinco meses antes de sua morte. Nele, a despeito das conhecidas manipulações que sofreu, reforça algumas conclusões a que Marx também chegara e antecipa outras que mais tarde seriam apropriadas e ampliadas por Lênin e Gramsci, por exemplo, como a necessidade de uma combinação entre formas “legais” e “ilegais” de luta e a compreensão do embate contra a burguesia e o seu Estado como um processo gradual, mais estratégico que explosivo, de ocupação de espaços no sentido do acúmulo de forças por parte dos trabalhadores.


Um comentário:

joelma disse...

Irretocável este texto de André Vianna Dantas em "Marxismo 21", um site tambem irretocável!