domingo, 27 de setembro de 2009

Dominicais

O mais novo membro da família, a encantadora Dalila (4 meses) que amanhã completa seu primeiro mês conosco.
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Vivi uma Salvador, ou melhor dizendo, uma Bahia (1) barroca. Numa época em que Pituba era um lugar longe demais. Basta dizer que tinha uma tia que ia àquela praia para fazer topless. De uma Nazaré, símbolo da urbanidade latina, um lugar habitável, gostoso, um tanto quanto provinciano, mas como é bom o ar da província! Dali, descíamos a pé em direção da Baixa do Sapateiro, atravessando-a, subindo ladeiras tortuosas até alcançar a Praça da Sé. Reparem bem, da Sé, não da Catedral, ponto central de um Centro Velho que se dividia entre Cidade e Comércio, em outras palavras: Cidade Alta e Cidade Baixa.
Isto, há cerca de 45 anos atrás, quando a primeira capital do Brasil tinha pouco mais de 500.000 habitantes. Quer dizer, uma cidade populosa, mas ainda habitável, suportável, com resquícios de um convívio humano e “civilizado”. E uma latinidade evidente, mesclada pela negritude dos abarás, candomblés e capoeiras, numa fase pré-axé.
Tenho saudades daquilo tudo. De meus primos a caminhar comigo pelas tardes em busca de cinemas e noite adentro a caça de novas emoções. Duros, estudantes com o dinheiro contado, mas tantas vezes frequentando as casas noturnas de danças e meretrizes, as boates, os cabarés. Muitas vezes tendo que sair às pressas sob pressão de algum gerente mais exigente que não permitia menores no recinto.
Na primeira vez que lá voltei, depois que mudei – ainda criança – para o Rio de Janeiro, encantei-me tanto com tudo aquilo que pedi a meus pais que me transferisse para um colégio local e ficasse por lá. Visto concedido, fui estudar no Severino Vieira, no próprio bairro de Nazaré (aliás, na entrada da praça do mesmo nome) onde estudei por seis meses. Obriguei-me a sair de lá por encontrar uma professora de matemática que era um terror, logo na matéria que eu mais tinha horror.
A segunda, mais traumática, mas nem por isso menos gostosa. Perseguido pelos militares após quase dois anos de militância política, fui me esconder em fazendas de parentes amigos onde fiquei por um bom período. Mas, depois de algum tempo, lá estava eu, no aconchego da casa de minha avó... Em Nazaré. Pertinho de meus primos e primas, de minhas tias, das velhas tias-avós no final de seu curso vital, mas ali... No útero de minha existência.
O barulhinho do entroncamento do bonde, no 191 da Avenida Joana Angélica, onde moravam algumas de minhas tias, era algo que me levava a um passado distante, pois ali, quando meus pais se casaram, vivi meus primeiros momentos. Talvez viesse naquele ruído, uma recordação das mais antigas que poderia ter.E o “Jogo do Carneiro”? Por incrível que pareça era o nome de uma rua. Ali perto, os papos entre meu primo André, eu e um conhecido, num bar em que bebíamos uma cervejinha e comíamos uns sandubas como tira-gosto, trocando idéias sobre Bergman, Brecht e Marx.
Na esquina da Júlio Barbuda, a rua em que minha avó morava, bem no topo da ladeira, uma baiana preparava acarajés no mesmo local em que também se deliciavam milhos torradinhos na brasa, amendoins cozidos e deliciosos saquinhos de umbu, aquela fruta que só provando sabe-se o quanto é saborosa.
Fora as festas de carnaval. O lendário carnaval baiano dos tempos em que trio elétrico era exatamente isso. Um caminhãozinho com três sujeitos tocando músicas seguido pela multidão na Avenida Sete, cheia de cadeiras que as famílias colocavam para sentar-se e assistir ao espetáculo. O mesmo carnaval dos bailes à noite nos melhores clubes da cidade. O mesmo carnaval em que saíamos de “careta” (mascarados) a brincar com os conhecidos, voz de falsete para não sermos reconhecidos. Ou amanhecíamos, sol na cara, estendidos na praia do Porto da Barra, fantasiados de qualquer coisa que nos embalara nas festas da noite anterior. No Bahiano de Tênis, no Iate ou na Associação Atlética.
E as idas ao ICBA (Instituto Cultural Brasil Alemanha) no Corredor da Vitória, onde assisti grande parte dos filmes do Expressionismo Alemão, quando era difícil se conseguir isto, pois não existia vídeo, muito menos DVD e outras facilidades de hoje em dia. Era uma época em que se tinha que correr atrás dos clássicos em exibições especiais, que geralmente eram únicas.
Tudo isto fez parte de uma velha Bahia barroca, única, inesquecível, na qual havia uma boa atividade cultural, no momento em que surgiam Glauber, Gal, Caetano e outros talentos. E que eu tive a feliz oportunidade de conhecer e da qual jamais me esquecerei.

(1) o bahiano, não se refere à cidade como Salvador, mas como Bahia mesmo.

6 comentários:

André Setaro disse...

Belo e comovente 'recuerdo' em busca de um tempo que se perdeu, mas que se encontra vivo na memória daqueles que o viveram com intensidade. Vim para Salvador (nasci no Rio, bem sabe você) em 1953, há, portanto, 56 anos, mais de meio século. Sinto-me com 'autoridade' para falar, dado o tempo passado, da Bahia. Hoje, com 3 milhões de habitantes, é um caos completo e absoluto. Residindo num bairro, Jardim Apipema, perto de Ondina, da Barra, não vou mais ao centro histórico. E o bairro onde moro nada tem a ver com a Bahia. A Bahia era aquele caminhar pelas suas ruas e ladeiras íngremes, a contemplar os casarões barrocos, a sentir a tranquilidade de seus becos.

Houve um tempo, década de 50, principalmente, que a Bahia foi um centro efervescente de cultura, pólo aglutinador do que de melhor se fazia no terreno das artes. Mas, com o passar dos anos, com o crescimento populacional estúpido, a Bahia foi, aos poucos, dando marcha a ré e, atualmente, reina uma impressionante miséria cultural.

Além da violência desenfreada, dos bolsões de pobreza monumentais, da decadência do centro histórico, do desprezo governamental pela sua preservação. Estamos todos limitados às salas exibidoras dos shoppings centers, a aguentar as conversas altas, os celulares ululantes, o comportamento selvagem de baianos que perderam a civilidade.

Havia uma elite que desapareceu, uma elite cultural, que se caracterizava, pelo menos, pelo respeito, pela educação, pelo 'lhano trato'. Com o surgimento do Centro Industrial de Aratu e o Pólo Petroquímico de Camaçari, uma gandaia oriunda do interior, a partir dos anos 70, se empregou nestes centros industriais, e comprou apartamentos em Salvador. Os filhos dessa gandaia são aqueles que formam a chamada nova geração.

Estou sendo duro. Mas é a simples constatação de fatos incontestes.

PS: Diga a Dalila que o livro que ela me pediu já o enviei via sedex.

Jonga Olivieri disse...

É, a Bahia de então era cercada de encantos, tão cantados por Caimmy, tão enaltecidos por Jorge Amado. Havia uma mitologia cultural, uma riqueza histórica, que hoje, ainda pode estar lá, mas de forma diluída pela vulgarização do axé, da banalidade e mediocridade do que surgiu com o passar dos anos e da urbanização acelerada que a levou a esses milhões de habitantes.
Um fenômeno não apenas local, mas nacional, mundial certamente.
O advento desta nova “elite”, com a industrialização, o “novorrichismo” das camadas médias a que você se refere. Havia um lado feudal em tudo aquilo, está certo, mas, por outro lado, a intelectualidade exercia um papel mais expressivo no todo da sociedade. O “progresso” tal e qual é compreendido, transformou a Bahia numa cidade (Salvador), moderna, porém extremamente desumana. A pobreza virou miséria absoluta, pois no capitalismo não existe o que se chama de “economia de subsistência”, quando o pobre era apenas pobre. Na economia capitalista se consome ou se produz dentro da “máquina”. Criam-se os grandes bolsões de miséria absoluta.

Ieda Schimidt disse...

Pouco conheço de Salvador, e, infelizmente já em uma época diferente desta tua.
Mas, de certo um belo texto que nos passa uma idéia do período descrito por ti.

Jonga Olivieri disse...

Obrigado Ieda, fico feliz em conseguir passar tudo o que senti pela minha velha Bahia barroca.

maria disse...

Bela postagem em que sente-se sentimento e boas recordações de tempos bem vividos. A-DO-REI!

Jonga Olivieri disse...

Exatamente, Mary, forma tempos bem vividos que ficaram marcados... bem marcados.