quinta-feira, 18 de julho de 2013

A importância de Gil Vicente para o início da era moderna em Portugal

Quando recomecei a leitura de “Auto da Barca do Inferno”, pois desde que sai da faculdade não o lia, estava convencido de que a frase “Ai Deus e u é” era parte integrante dele. Mas o fato é que não é, sendo a autoria do Rei Dom Diniz em uma “cantiga de amigo”:

"Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo!

ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado!

ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,

aquel que mentiu do que pôs comigo!

ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,

aquel que mentiu do que mi há jurado!

ai Deus, e u é?"


Na lírica medieval galego-portuguesa uma “cantiga de amigo” é uma composição breve e singela posta na voz de alguem (na maioria das vezes uma mulher) apaixonado. Devem o seu nome ao fato de que na maior parte delas aparece a palavra “amigo”, com o sentido de pretendente, amante, concubino.


Já os "autos" são a designação genérica para uma peça, uma pequena representação teatral.  Originário na Idade Média, tinha, de início caráter religioso; depois tornou-se popular (para distração do povo). E foi Gil Vicente (1465 / circa 1537) que introduziu esse tipo de encenação em Portugal.

O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia (Autos da Barca "da Glória", "do Inferno" e "do Purgatório"). Escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem entre os personagens é coloquial - e é através das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens.


Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os valores morais de duas épocas: ao mesmo tempo em que há uma severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval.

O "Auto da Barca do Inferno" (circa 1517) representa o Juízo Final (católico) de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário é um porto, onde se encontram duas barcas. Uma com destino ao inferno, comandada pelo Diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um Anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão, ao paraíso ou ao inferno.


“Auto” de moralidade composto por este Gil Vicente, e, segundo ele, pela “contemplação da sereníssima e muito católica Rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto Rei Manuel”, o  primeiro em Portugal com este nome...

Começa então a declaração e o argumento da obra. Primeiramente auto “se fegura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet, um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um Companheiro...


... O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e üa cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno antes que o Fidalgo venha.” (sic).


O diálogo entre o Diabo e o seu Companheiro constitui o primeiro momento da ação deste auto. Nesta cena inicial, a qual antecede a entrada dos passageiros, o estado de espírito do Diabo é de  raiva. O Diabo, eufórico, dá ordens ao Companheiro para preparar rapidamente a caravela antes de chegarem os passageiros. O Companheiro executa as ordens recebidas com rapidez e entusiasmo. O ambiente é de festa e o Diabo anseia que tudo esteja preparado para o embarque das almas e para a partida rumo ao Inferno.


As interjeições e locuções interjetivas são usadas frequentemente nas frases com o texto de tipo exclamativo. É através de interjeições e locuções interjetivas que o Companheiro do Diabo mostra o seu entusiasmo: “Feito, feito!” Denota entusiasmo, prontidão; “Ô-ô, caça! Ô-ô, iça! iça!” exprime a satisfação com que desempenha a tarefa.


Em cena, estão o Diabo e o Companheiro. Eles conversavam sobre as diversas providências que precisavam tomar antes de iniciarem a viagem. O Diabo e o Companheiro estão embelezando a barca. Nota-se que o Diabo é um barqueiro, pelo simples fato de conhecer as marés e dominar o vocabulário próprio da arte de navegar.

O Diabo está bem disposto, entusiasmado, otimista: “barca, barca, houlá... que temos gentil mar, que festa!”


Os mortos começam, então, a chegar. Um Fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O Diabo ordena ao Fidalgo que embarque. Este, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo Anjo, encaminha-se (frustrado) para a barca do inferno... Mas tenta convencer o Diabo a deixá-lo rever sua amada, pois esta "sente muito" sua falta. O Diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando.

Um Agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o Anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao Diabo que o deixe voltar para pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba embarcando na barca do inferno.


O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (tolo). O Diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o Anjo. Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu.


A alma seguinte é a de um Sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o Diabo. Como não consegue, recorre ao Anjo, que o condena como alguém que roubou do povo.


O Frade é o quinto a chegar, com a sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o Diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso.


Brígida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo Diabo, que lhe diz que seu o maior bem são "seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreende-se que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brígida Vaz tenta convencer o Anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria.


A seguir, é a vez do Judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao Diabo, pedindo para embarcar, mas até o este recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o Diabo, porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O Judeu fala então com o Anjo, porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo aceita levar o Judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e sim, a reboque.


Tal trecho faz-nos pensar em um preconceito antissemita do autor, porém, para entendermos por que Gil Vicente deu tal tratamento a esse personagem, precisamos contextualizar a época em que o auto foi escrito. Durante o reinado de dom Manuel (1495-1521), muitos Judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época.


O Corregedor e o Procurador, representantes do Judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos. Quando convidados pelo Diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e encaminham-se ao Anjo. Na barca do céu, o Anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brígida Vaz, revelando certa familiaridade com a cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela...


O próximo a chegar é o Enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção.


Por fim, chegam à barca quatro Cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são recebidos pelo Anjo e perdoados imediatamente. 
 
Como se percebe, todos os personagens que teem como destino o inferno possuem algumas características que lhes são comuns, chegam trazendo com eles objetos terrenos, representando seu apego à vida; por isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são cristãos e puros. Você pode perceber que o mundo aqui ironizado pelo autor é maniqueísta: o bem e o mal são metades de um mundo moral simplificado.

A sátira social é implacável e coloca em prática um lema, que é "rindo que se corrigem os defeitos da sociedade". A obra tem, portanto, forte valor educativo. A sátira vicentina serve para nos mostrar, tocando nas feridas sociais do seu tempo, que havia um mundo melhor, em que todos eram melhores. Mas é um mundo perdido, infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um tanto pessimista.


Deve-se reparar nos vocábulos e expressões utilizadas pelo Diabo: “barca”, “caro”,“ré”, “palanco”, “leito”, “poja”, “driça”, “verga”, “âncora a pique”. Estes termos são conhecidos e usados apenas pelos marinheiros, pois trata-se de um conjunto de vocábulos característico da atividade marítima. Para compreender-se melhor, reparemos algunz exemplos do vocábulo. Por exemplo:  furo, que no registro corrente significa um buraco, um orifício. Na gíria estudantil significa um período de tempo sem aulas. Na gíria dos jornalistas significa uma notícia exclusiva, em primeira mão.


O diálogo entre o Diabo e o seu Companheiro é composto por frases do tipo exclamativo e imperativo. “Despeja todo esse leito!” - frase do tipo imperativo.


Como aquela em que o Diabo dá uma ordem: “Em boa hora! Feito, feito!”

E o Companheiro manifesta entusiasmo e satisfação.


Associam-se os seguintes versos à frase:


Diabo:

“À barca, à barca, houlá!

que temos gentil maré! Ora venha o carro a ré!”


Companheiro:

“Feito, feito!

Bem está!

Vai tu muitieramá,

e atesa aquele palanco

e despeja aquele banco,

pera a gente que virá.


À barca, à barca, hu-u!

Asinha, que se quer ir!

Oh, que tempo de partir,

louvores a Berzebu!

Ora, sus! que fazes tu?

Despeja todo esse leito!”


Diabo:

“Abaixa aramá esse cu!

Faze aquela poja lesta

e alija aquela driça.”


Companheiro:

“Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!”


Diabo:

“Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa.

Verga alta! Âncora a pique!

Ó poderoso dom Anrique,

cá vindes vós?... Que cousa é esta?”


Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, e diz:

“Esta barca onde vai ora,

que assi está apercebida?”


Diabo:

“Vai pera a ilha perdida,

e há-de partir logo ess'ora.”


Fidalgo:

Pera lá vai a senhora?”


Diabo:

“Senhor, a vosso serviço.”


Fidalgo:

“Parece-me isso cortiço...”


Diabo:

“Porque a vedes lá de fora.”


FIDALGO:

“Porém, a que terra passais?”


Diabo:

“Pera o inferno, senhor.”


Fidalgo:

“Terra é bem sem-sabor.”


Diabo:

“Quê?... E também cá zombais?”


Fidalgo:

“E passageiros achais pera tal habitação?”


Diabo:

“Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais...”


E por aí afora numa brilhante descrição que se alonga por todo o “auto”... Uma obra marcante, que, infelizmente, poucas vezes foram encenadas no Brasil contemporâneo. O que vem a demonstrar nosso desligamento das raízes de uma cultura e uma alienação constante em nossa formação intelectual. Tão importante para nossa língua quanto Shakespeare para a inglesa ou Cervantes para a espanhola, Gil Vicente é um autor quase desconhecido, aqui por brasiliensium terrarum.


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7 comentários:

Misael disse...

Gil Vicente classificou suas peças divididas em três grupos: obras de devoção, farsas e comédias.
Seu filho, Luís Vicente acrescentou um quarto gênero, a tragicomédia.
Algumas de suas peças foram impressas sob a forma de folhetos e a primeira edição do conjunto das obras foi feita em 1562 (organizadas por seu filho Luis). Dessa primeira compilação não constam três dos autos escritos por Gil Vicente, provavelmente por terem sido proibidos pela Inquisição. Aliás, o índice dos livros proibidos, de 1551, incluía sete obras do autor.
Gosto demais dos "autos", mas a sua obra mais conhecida é A farsa de Inês Pereira.
Mas podemos citar também: - Auto Pastoril Castelhano (1502) Auto da Visitação (1502), Auto dos Reis Magos (1503), Auto da Índia (1509), Auto da Sibila Cassandra (1513), este Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Barca do Purgatório (1518), Auto da Barca da Glória (1519) e finalmente A Farsa de Inês Pereira (1523).
A dimensão e a riqueza da sua obra constituem um retrato vivo da sociedade portuguesa, nas primeiras décadas do século XVI, onde estão presentes todas as classes sociais, com os seus traços específicos, seus vícios e suas preocupações. Também no aspecto linguístico o valor documental da sua obra é inestimável e constitui uma grande fonte de informação sobre o início daquele século em Portugal.

Nun'Alvares disse...

Só uma concepção mais pequena da Arte, uma tradição nas universidades portuguesas, levou o romantismo a separar o ourives (arte mecânica), do poeta dramaturgo... E esta "separação" fabricada por um romantismo serôdio, tenta sobreviver ainda hoje nestas universidades, e, a partir delas, nas suas mais divulgadas enciclopédias, inclusivé na Internet.

Joelma disse...

Cada livro publicado sobre Gil Vicente é, quase sempre, defensor de alguma espécie de tese que identifique ou não o autor ao ourives.
A favor desta hipótese existe o fato do dramaturgo usar com propriedade termos técnicos de ourivessaria na sua obra.
Alguns intelectuais portugueses polemizaram sobre o assunto. Camilo Castelo Branco escreveu no documento "Gil Vicente, Embargos à fantasia do Sr.Teófilo Braga" – que defendia uma só pessoa para o ourives e para o poeta, enquanto que ele (Camilo) defendia duas pessoas distintas.
Teófilo Braga mudaria de opinião depois de um estudo em que mostrava a genealogia distinta de dois indivíduos de nome Gil Vicente, apesar de Brito Rebelo ter conseguido comprovar a inconsistência histórica destas duas genealogias, utilizando documentos da época, Lopes da Silva, na obra citada, avança uma dezena de argumentos para provar que Gil Vicente ainda era ourives quando escreveu a sua primeira obra, uma imitação do "Auto del Repelón", de Juan de Encina a quem pede emprestada não só a história, mas também os personagens.

Anônimo disse...

Só queria mesmo dizer que gostei muito da sua esclarecedora postagem sobre este assunto.
E agradecer estes comentaristas intelectuais que ainda acrescentaram muito para mim!

Tavim

André Setaro disse...

Uma verdadeira aula, este seu post de hoje.

Rui de Sá disse...

Muito fixe!

Glaucia disse...

Tu conseguiu a façanha de resumir um raciocínio em pouco mais de tres laudas de texto. E sei disso porque copiei tua matéria e a coloquei no Word. Parabéns!