sábado, 21 de setembro de 2013

O marxismo althusseriano e as bases do Estado burguês no Brasil




O cientista político Décio Saes é autor de uma obra que combina rigor teórico em elevado nível de abstração, frequentemente apoiado na pesquisa histórica, com a investigação de temas centrais da formação social brasileira – sobretudo na passagem do escravismo para o capitalismo. Concentrando-se no estudo teórico do Estado e da democracia, foi um dos principais responsáveis pela manutenção do Estado como objeto central da Ciência Política brasileira, sobretudo quando o liberalismo buscava questionar a centralidade do seu estatuto teórico.
Articulando ainda a análise dos fenômenos políticos com uma marcante perspectiva sociológica, especialmente voltada para o estudo das classes e dos grupos sociais. Para isso, não apenas apoiou-se na contribuição de Nicos Poulantzas, como promoveu uma reinterpretação original das teses do marxismo althusseriano, sobretudo as relativas à teoria da história.
O resultado foi a abertura de novas possibilidades para uma análise articulada e coerente da formação social brasileira em seus diferentes momentos históricos. Além disso, como intelectual engajado, Décio Saes tem elaborado análises conjunturais fecundas como mostra, por exemplo, o artigo sobre o governo FHC. Mais recentemente, Décio Saes, sem abandonar os estudos de Ciência Política e sobre o materialismo histórico, dedicou-se à análise crítica do tema da cidadania e da educação.
Concedida a Marcelo Lira Silva, a entrevista abaixo foi publicada originalmente na Revista Aurora, nº 2, páginas 19-32, jan-jul, 2013.

Revista Aurora: Gostaria de pedir ao professor que falasse um pouco sobre sua trajetória pessoal e intelectual.

Décio Saes: Eu nasci em São Paulo em 1942, minha família faz parte da classe média tradicional, de formação universitária; uma família de muitos professores. Terminei os meus estudos iniciais e logo busquei a Universidade de São Paulo (USP); a época, essa era a grande opção para a classe média universitária. Minha opção foi o curso de direito, mas depois, tendo terminado tais estudos, não me animei com a perspectiva de militar na área jurídica. Então, acabei fazendo o curso de Ciências Sociais também na USP. Após terminá-lo, fui contratado pela Unicamp, primeiro como professor de Sociologia, posteriormente de Ciência Política.
Naquela época, em 1969, a Pós Graduação não estava implantada nos termos atuais no Brasil. Desta forma, para fazer a pós-graduação com carga horária, grade curricular, professores e orientador, era necessário ir para o exterior. Assim, resolvi fazer meu doutorado na França. O mestrado foi feito no regime antigo (que não implicava fazer cursos ou disciplinas); nele, eu falava sobre a Classe Média – que virou um tema recorrente na minha carreira. Na França defendi minha tese também sobre a Classe Média Política, tendo sido orientado pelo Professor Alain Touraine, que está aposentado, mas militando ainda. Passei três anos nestes estudos, voltando então ao Brasil. Fiz minha carreira por 30 anos na Unicamp (como professor de ciência política), passando por todas as etapas do percurso universitário: concursos de livre docência, adjunção e titularidade. Nesse período, acumulei funções por certo tempo na Unicamp, como professor de Ciência Política, e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), na USP, como professor de Sociologia Urbana. Após este período, voltei a ser professor exclusivo da Unicamp e encerrei minha carreira na Universidade Pública em 1998. Depois disso, fui contratado como pesquisador pela Reitoria da Universidade de São Paulo e fiz um estágio no Instituto de Estudos Avançados, onde realizei pesquisas sobre a evolução da cidadania no Brasil. Depois desse período de dois anos, prestei concurso no ensino privado, tornando-me professor de sociologia da educação na Universidade Metodista de São Paulo, localizada em São Bernardo do Campo, e Professor de Ciência Política na Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado. No momento, continuo atuando na UMESP. Meus principais trabalhos são os livros: Classe Média e Política na Primeira República Brasileira; Classe média e Sistema Político no Brasil; A Formação do Estado Burguês no Brasil; Estado e Democracia – Ensaios Teóricos; Democracia; e República do Capital.

Revista Aurora:Como foi ser estudante universitário e depois docente neste período tão agitado da história do Brasil?

Décio Saes: Na verdade, neste período eu consegui me subtrair pessoalmente aos efeitos mais dramáticos da conjuntura política. No período mais turbulento foi o que se estende de janeiro de (1969 até início do ano de 1974: ou seja, o período Médici). Ora, no segundo semestre de 1971, saí para o exterior para fazer o doutorado. Quando voltei já tinha se iniciado a abertura.
O período anterior do regime militar (1964 - 1968) como já foi reconhecido por muitos sociólogos, foi um período de muita agitação cultural. A primeira fase do regime militar foi um período em que o regime político era mais “flexível”. A agitação cultural e a efervescência cultural aumentaram muito no Brasil naquele período por força da classe média, mas também pelo que grassava no mundo desenvolvido. Foi o período das grandes revoluções estudantis
no campus da Califórnia, em Paris, na Itália, na Alemanha e assim por diante. Então, foi um período brilhante da vida cultural brasileira, não obstante a presença do regime militar.
Quando voltei da França, já estávamos em um período em que os constrangimentos já eram bem inferiores; já estava havendo uma liberalização inclusive na própria vida universitária. A Universidade sofreu as conseqüências da instauração do regime autoritário por um período relativamente curto. Assim, a despeito de muitos intelectuais terem sido aposentados, ou ido para o exílio, mesmo que alguns deles não tenham voltado, a universidade conseguiu rapidamente se recompor, de tal modo que não chegou a uma situação de ruína absoluta como aconteceu em outros casos de regime autoritário. Com isso, não estou querendo louvar as “virtudes” do regime militar, mas querendo dizer que , na minha avaliação pessoal, o conjunto da categoria universitária foi “relativamente poupado” de uma repressão mais violenta que teria levado à total ruína a vida acadêmica no Brasil. A minha experiência , nesse terreno , é uma experiência relativamente tênue. O que realmente a universidade sofreu (de certa maneira, indiretamente) foi a perseguição aos intelectuais que tinham se envolvido, fora da universidade, em lutas pela restauração do regime democrático, confrontando-se abertamente com o regime.
Lamentamos que a repressão tenha se abatido sobre esses nossos colegas, embora felizmente
uma grande parte deles tenha logrado, mais tarde, reintegrar-se à vida acadêmica.

Revista Aurora: Seus pais tinham alguma formação política e/ou atuação política?

Décio Saes: Meu pai foi médico, professor universitário, e também atuou durante décadas na secretaria estadual de saúde, tendo falecido antes da instauração do regime militar. Era o que se pode chamar um liberal conservador, sempre tomando posições a favor do partido que a seu ver correspondia aos ideais do liberalismo, a UDN. Pode-se assim dizer que meu pai sempre foi anti-Varguista: participou militarmente da revolução de 1932, sendo ferido nesta “revolução paulista” contra Vargas. Minha mãe não tinha nenhuma militância, era uma típica dona de casa, e seguia, do ponto de vista ideológico e político, as diretivas dadas pelo meu pai.

Revista Aurora: Quais foram os caminhos/descaminhos que o levaram à sua posição presente?

Décio Saes: É uma questão difícil de responder, mas existe um fato que seguramente foi muito
importante na minha vivência pessoal. Pertenço a uma família de classe média de professores
e burocratas. Uma família tradicional, mas sem nenhum grau elevado de riqueza, uma família
abastada, mas não rica, que convivia com famílias da classe alta e da classe dominante.
Freqüentei colégios onde havia alunos pertencentes a esses estratos sociais, o que gerou em mim certo ressentimento. Essa convivência forçada, que eu não tinha desejado, com uma classe social à qual eu não pertencia, levou-me a uma visão crítica deste meio social. Mais exatamente, eu tinha sentimentos ambivalentes com relação às classes altas. Eu me sentia, ao mesmo tempo, inferior socialmente, mas superior culturalmente. Posso dizer que foi essa situação que me levou para o campo da crítica da sociedade burguesa. Eu não tive contato com escolas populares; vivia em uma mansão nos Jardins, e em todos os ambientes eu convivia com a classe alta, não pertencendo a ela. Esse foi um dos fatores da minha politização. Digamos que os caminhos da politização são tortuosos. Eu me lembro de que Sartre conta, com certa dose de humor, que o caminho para a sua politização foi o segundo casamento da sua mãe com o dono de estaleiros em La Rochelle: “o fato de saber que um grande capitalista dormia todas as noites com a minha mãe me tornou comunista”.

Revista Aurora: Professor Décio, você já esteve ligado a algum Partido Político?

Décio Saes: Eu não gostaria de responder essa pergunta. Posso dizer que tive uma militância tênue em um partido que não era legal, mas que não havia se engajado em formas abertas de confronto ao regime militar e que preferia o trabalho paciente, político. Tive um pequeno período de militância neste partido que pregava táticas democráticas de luta contra o regime militar, esta foi a minha única militância, e foi relativamente curta, inclusive porque no período pós 1969 a repressão se abateu sobre todas as organizações mesmo aquelas que eram 22 consideradas moderadas. Sabe-se que muitas pessoas foram torturadas (ou morreram), mesmo não pertencendo a organizações radicais.

Revista Aurora: Quais foram suas referências intelectuais e políticas, quando se aproximou da esquerda?

Décio Saes: Quando entrei na FFLCH (Faculdade de Filosofia), ela vivia em uma fase de profundo ecletismo teórico e acadêmico. A marca do curso de Ciências Sociais havia sido impressa na Faculdade pelo grande mestre Florestan Fernandes, que pensava que a melhor postura a se tomar no campo da observação e análise da realidade social era a combinação dos métodos ligados a diversas posições teóricas. Essa orientação era predominante na faculdade.
Um clima mais favorável a definições precisas no campo teórico só começou a se instalar a partir de 1968. Até então, o clima era de grande ecletismo; e nós, alunos, combinávamos diferentes autores, de diferentes tendências. Afinal, nós víamos Florestan Fernandes e seus discípulos praticando esse ecletismo. Isto vinha da sociologia francesa e de certa maneira rebateu na faculdade de filosofia graças à presença do francês Roger Bastide, de quem Florestan Fernandes foi assistente. A partir de 1967–1968, o ecletismo teórico foi se tornando impossível por conta do movimento estudantil, que começou a pressionar a categoria docente por uma definição teórica mais rigorosa, mais precisa. E nesse ponto justamente chegou ao Brasil o pensamento de uma nova corrente do marxismo europeu, mais especificamente francês, que era a corrente liderada pelo filósofo Louis Althusser. Eu rapidamente me interessei por tal filósofo, que era influenciado pelas teses do estruturalismo, muito forte na França no campo da antropologia com Levy-Strauss e da linguística com Ferdinand Saussure, O estruturalismo repercutiu mesmo dentro do marxismo e essa subcorrente surgiu tendo como líder Althusser. Essa corrente, nos casos de São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e de outros estados, repercutiu no seio da categoria docente, nossos professores começaram a ser influenciados por ela. Nós, discentes, também passamos a nos filiar a esta corrente diretamente, sem que necessariamente nos fosse sugerido. Ao fazer meu doutorado, era um debutante nos estudos althusserianos.
Chegando a Paris, procurei apurar qual era a inserção acadêmica dos membros da corrente althusseriana, e a seguir fui inscrever-me nos cursos dos professores que pertenciam a esta vertente. Tive o privilégio da escolha tanto na École Pratique des Hautes Études quanto na Sorbonne, pois, embora meu orientador não pertencesse à corrente althusseriana, tratava-se de um professor liberal, generoso, que parecia de fato compreender o que se passava com os estudantes. Seu único desejo era que cada um fizesse o melhor possível dentro do caminho teórico que havia sido escolhido. Assim, pude trabalhar com toda a liberdade, escrevendo meu doutorado e todos meus trabalhos posteriores dentro da perspectiva althusseriana.

Revista Aurora: Pode-se dizer que você foi um dos responsáveis pela entrada e difusão do
pensamento do Althusser no Brasil?

Décio Saes: Na fase mais recente, talvez. Há uma geração dez anos mais velha que começou este trabalho. Eu pertenço à segunda geração encarregada da difusão do pensamento althusseriano; os mais velhos foram influenciados pela velha guarda e os mais jovens foram influenciados por mim e outros colegas.

Revista Aurora: Fale um pouco sobre a questão do livro Formação do Estado burguês no Brasil.

Décio Saes: Eu escrevi este livro já completamente influenciado e militando dentro do marxismo althusseriano. Eu queria de certa maneira revolucionar os estudos sobre a revolução burguesa no Brasil a partir do enfoque althusseriano. Até aquele momento havia outra visão da Revolução burguesa no Brasil, predominante: o marco da revolução burguesa no Brasil teria sido a revolução de 1930, pois supunha-se que , nessa conjuntura , a burguesia industrial teria tomado o poder político. Assim, em muitos livros marxistas mais antigos, estava presente a ideia de que o marco da passagem para o capitalismo no Brasil teria sido a revolução de 1930. Como eu trabalhava no marco da teoria althusseriana, eu colocava outra questão: em que momento se forma uma estrutura jurídico-política de caráter capitalista no Brasil? Eu não colocava a questão de saber em que momento a burguesia industrial havia tomado o poder, a minha pergunta era: em que momento teria surgido um Estado burguês moderno no Brasil? O foco da pesquisa passava, portanto, a ser, o processo de emergência de uma estrutura jurídico-política capitalista no Brasil.
Na ótica althusseriana, seria necessário primeiro haver uma estrutura jurídico-político capitalista para que depois uma estrutura econômica capitalista se tornasse dominante. Então, no momento da formação dessa estrutura jurídico-política, não existiria uma burguesia industrial para tomar o poder político. A burguesia industrial, na visão althusseriana, seria ela mesmo resultado da implantação de uma estrutura jurídico-político capitalista. Eu apliquei esse esquema teórico althusseriano da transição ao caso brasileiro e, observando os fatos, conclui que o Estado burguês moderno, no caso brasileiro, tinha se formado mediante um processo histórico que envolvia a abolição da escravidão, a derrubada do estado imperial escravagista e a organização de um novo estado republicano. Então, a revolução política burguesa no Brasil teria ocorrido entre 1888 e 1891 e não em 1930 como defendia, por exemplo, Nelson Werneck Sodré. Eu antecipei, na análise do processo histórico, o momento da revolução política burguesa. Na minha obra, ela aparece situada entre 1888 e 1891. Essa é a primeira novidade deste trabalho; a segunda é que eu não atribuo à burguesia industrial o caráter de força dirigente nessa revolução burguesa, afinal ela não existe entre 1888 e 1891. Havia alguns donos de manufaturas, mas não se pode sequer falar da existência de uma burguesia manufatureira, de caráter pré-industrial.

Revista Aurora: Pode-se falar em uma burguesia agrária no Brasil?

Décio Saes: Não! Afinal, não havia trabalho assalariado na área rural. Se houvesse arrendamento de terras pelo proprietário fundiário a um empresário capitalista e assalariamento no setor agrário, teríamos uma burguesia rural, como a que existe hoje no interior de São Paulo. Mas o arrendamento de terras pelo latifundiário, conjugado ao emprego de trabalhadores assalariados, não existia naquela época. O que determinou o fim do Estado escravagista foi a combinação da emergência de um movimento abolicionista republicano de classe média com o movimento de revolta escrava. Essa movimento de revolta, na década de 1880 , passou a ser dirigido pela classe média urbana, cujo objetivo central era derrubar o Estado escravista e instaurar a cidadania, e não, resolver a questão social e material do negro. Esse movimento era pequeno em tamanho, mas tinha enorme poder de pressão, já que abrigava estudantes universitários, profissionais liberais e, sobretudo militares. Estes últimos tiveram um papel muito importante como representantes da classe média. Na crise do escravismo, os militares se recusaram a perseguir os escravos, participaram dos clubes abolicionistas e tiveram forte presença na derrubada no regime monárquico. Este foi o resultado da ação da média oficialidade do exército que colocava os generais na parede dizendo: “ou vocês participam da derrubada ou serão presos imediatamente”. Esta média oficialidade, que militou no abolicionismo e no republicanismo, foi a vanguarda na derrubada no Estado imperial. Mas essa vanguarda representava os interesses da classe média, para a qual um país das dimensões do Brasil, com todas as suas riquezas, não podia viver sob um sistema político tão atrasado. Boa parte dessa classe média era egressa da classe dominante, mas tinha feito sua entrada no mundo da cultura. Os seus membros tinham ido estudar no exterior e voltavam com a ideia revolucionária de derrubar o Estado escravagista imperial. Portanto, a intelectualidade de classe média e os militares tiveram a maior importância na derrubada no Estado escravagista.
Comte influenciou toda essa geração de intelectuais e militares brasileiros, pois se colocava claramente contra a escravidão e dizia a seus jovens discípulos brasileiros que não era possível admitir um fenômeno como a escravidão em um país como o Brasil. Ele dizia: “vocês tem a obrigação de derrubar essa instituição infame e vil”. Não houve, no caso brasileiro, uma revolução tão massiva, com participação de massa como na revolução francesa; mas não podemos nos esquecer de que a massa escrava que se evadiu dos latifúndios é parte importante desse movimento. Foi essa evasão organizada dos negros das fazendas que colocou o gabinete imperial contra a parede e o fez decretar o fim da escravidão.

Revista Aurora: Como você vê as relações entre essas camadas médias urbanas e as oligarquias regionais, já enraizadas na cultura política?

Décio Saes: Logo depois da abolição e da proclamação da república, sobrevém um período em que as lideranças revolucionárias de classe média entram em retração, porque se estabelece o domínio das oligarquias regionais. Desse ponto de vista, a revolução aparece para a vanguarda republicana como uma espécie de fracasso histórico-político. Por isso, é simbólico e emblemático o suicídio de Silva Jardim se jogando na boca do Vesúvio depois da Abolição e da derrubada do Estado imperial. Jardim foi um grande líder republicano, mas não conseguiu ser eleito deputado na província fluminense logo após a instauração da república: o cerco que as oligarquias fizeram à sua figura e a outros líderes radicais de classe média levou a uma espécie de retração de classe. Aníbal Falcão desaparece da cena, muitos militares mais radicais também desaparecem e não vão participar dos governos federais após o interregno militar comandado por Floriano Peixoto. É com a ascensão dos paulistas ao governo federal que se instaura um período que podemos chamar de “termidor brasileiro”, a fase jacobina tendo sido aquela que se estendeu de 1888 a 1891. Depois dessa fase, começa a contra- revolução. As oligarquias paulista e mineira se estabelecem nacionalmente; e depois as oligarquias regionais se estabelecem em cada estado. A partir daí, durante algumas décadas (pelo menos, três), é como se a classe média estivesse acomodada à hegemonia das oligarquias. Na verdade, ela não se acomodou de um modo tão simples; ela vai participar freqüentemente das lutas das dissidências oligárquicas contra o grupo oligárquico no poder. Este foi o modo de participação política possível naquele contexto histórico. No período oligárquico, a classe média se mobilizava em função de lutas contra um grupo situacionista qualquer, que dominava os estados ou o governo federal, mas essa participação tinha um caráter limitado, porque não questionava a dominação oligárquica.
Começa-se a notar certa inquietação na classe média a partir da década de 1920. E por quê? Porque a urbanização se intensifica. Os efeitos do nascimento da indústria começam a se fazer sentir. A própria classe média começa a se expandir, de certo modo começa a se tornar mais plebéia, ocupar a franja inferior do aparelho de serviços urbanos. Desse modo, essa classe média começa a se aproximar de uma postura, algo intuitiva e não programática, de contestação da dominação oligárquica. O fenômeno do tenentismo exprime um pouco a emergência dessa postura. Em geral, os tenentes pertenciam à classe média e começavam a criticar a dominação política dos grupos agro- exportadores, mas ainda sem ter propriamente um projeto de industrialização do país. De certo modo, as revoltas de 1922 e 1924 , bem como a Revolução de 1930, exprimem de uma maneira tortuosa esse desejo de mudança social e modernização do país, que não se mostra com clareza num projeto propriamente de industrialização, mas que aparece abertamente na aspiração a um modo moderno de vida, a um consumo de melhor qualidade, à melhoria do padrão de vida urbana, de habitação, transporte, saúde, etc. Então a classe média entra no seu ciclo político ascensional, mais uma vez pela via da ação militar.
Como, em 1888-91, ela foi politicamente representada pelo exército na derrubada do regime monárquico, a partir da década de 1920 a primeira forma de expressão dos ideais da classe média é o movimento tenentista. Esse tipo de agitação de classe média chega ao auge na revolução de 1930, que resulta da coligação de grupos oligárquicos dissidentes com o movimento tenentista (militares de classe média). O importante é que, a partir de 1930, a exportação de produtos agrícolas deixou de ser o enfoque central da política governamental. Assim, surgiram as condições para uma política de industrialização, primeiro no Estado Novo, depois na década de 1950. Surgiram também as condições para a escola pública, gratuita e obrigatória, uma típica aspiração de classe média que foi implantada em 1931; também é legalizada a atuação sindical em 1930. Neste momento, desenvolve-se o ensino universitário, pode-se dizer que o surgimento da universidade se deu praticamente nesta década (anos 1930). Então, todas as reivindicações da classe média começam a ser implementadas nesse período posterior a 1930, e a burocracia civil e militar desse período (1930-1964) exprime de um modo geral essas aspirações. Essa é a característica política central desse período que nós nomeamos “Período nacional-populista”. Surgem governos que agora não traduzem mais os ideais da antiga classe dominante, ligada à exportação de produtos agrícolas para o exterior. Agora, há outras prioridades; e o Brasil vai se encaminhando para se tornar uma sociedade capitalista moderna. Desta forma, podemos dizer que o ciclo político ascensional da classe média se esboça a partir da década de 1920, se inicia formalmente com a revolução de 1930 e se encerra com o golpe militar de 1964.
Neste período 1930-1064, foram os interesses da classe média que impulsionaram o Estado no sentido da modernização, urbanização, implementação de políticas sociais e assim por diante. Não havia uma burguesia industrial suficientemente forte e autônoma frente ao exterior que pudesse comandar esse processo. Foi a burocracia, interpretando os anseios da população urbana, que teve que dar conta disso. Isso define a originalidade, como também explica a instabilidade política do populismo. Pois é uma política de Estado que responde às aspirações de um grupo que não é classe dominante; tal política não é abertamente hostilizada pela burguesia industrial, mas também não é por ela apoiada. A burguesia industrial por vezes hesitou em apoiar a implantação da indústria de base no Brasil, porque supunha que o resultado seria o encarecimento dos nossos custos, dada a escala necessariamente reduzida da produção interna de insumos industriais e maquinaria. A burguesia industrial hesitava, portanto com relação à política de industrialização. Eram a burocracia e a classe média que buscavam implementá-la.
Esse ciclo político se interrompeu em 1964; e voltamos para uma política dominada pela classe dominante. Agora não mais aquela exportadora de produtos agrícolas, mas uma associada ao capital estrangeiro, produtora de automóveis, eletrodomésticos, etc. A ligação entre Estado e classe dominante volta a se tornar orgânica com o golpe de 1964; assim se encerrou o ciclo
político ascensional da classe média.

Revista Aurora: Então você concorda com os teóricos que dizem que ali houve um colapso do pacto populista?

Décio Saes: Concordo, concordo plenamente. O golpe de 1964 teve essa característica.

Revista Aurora: De acordo com Carlos Nelson Coutinho, na literatura brasileira se consolidaram três paradigmas na leitura do Brasil: a) o primeiro, que adota a categoria da revolução passiva; b) o segundo que adota as categoria da via prussiana; e c) o que adota a categoria da modernização conservadora. Em qual desses paradigmas poderíamos localizar sua obra?

Décio Saes: Nenhum dos três! Afinal estou propondo um quarto paradigma que se baseia na teoria da transição do capitalismo formulada pelo grupo althusseriano.

Revista Aurora: Quais as discordâncias com estes outros paradigmas?

Décio Saes: A diferença é que os outros não trabalham a mudança social como um jogo social entre as estruturas da sociedade. Na verdade, a interpretação althusseriana depende da clara identificação das estruturas fundamentais da sociedade; e, a partir de então, você pode entender que, na transição, a relação de interação recíproca entre as estruturas se interrompe. Uma estrutura vai ter que jogar papel indutor na mudança, ela terá que se antecipar na mudança e daí comandar a transformação da outra estrutura. Ou seja, no fundo, ao caracterizar mudanças sociais como um jogo defasado entre as estruturas, a corrente althusseriana está transpondo para a teoria a ideia que nós encontramos nos textos de Marx e Engels: você precisa fazer uma revolução política antes de transformar a economia. A revolução francesa foi feita antes que a França se tornasse uma nação capitalista. A revolução inglesa do século XVII se deu antes que a grande indústria nascesse. A revolução de 1848 na Alemanha extinguiu a servidão e criou o Estado moderno antes que o país se tornasse uma grande nação industrial. Entretanto, essa visão da transição para o capitalismo e da revolução burguesa como jogo defasado entre estrutura político-jurídico e estrutura econômica, a primeira se antecipando à segunda, essa visão se adequa à observação de fatos históricos que nós já conhecíamos há muito tempo. Que não havia capitalismo na França em nível econômico quando da revolução francesa; que não havia capitalismo na Inglaterra quando da sua revolução política; que não havia capitalismo na Alemanha antes da revolução de 1848. Assim, a teoria althusseriana da transição é a que dá mais relevo a esses fatos, porque leva em conta o jogo defasado entre as estruturas. As demais correntes trabalham muito com a observação da estrutura econômica e com o processo de formação de uma nova classe dominante: a burguesia. Na minha visão, a burguesia industrial aparece como resultado final do processo, e não como ponto de partida do processo. Muito frequentemente, nas análises das correntes que você citou, há uma grande preocupação em se caracterizar o processo a partir de uma caracterização do comportamento da burguesia: se a burguesia se comportar de um modo, o processo será de um tipo determinado. Na minha visão, não é o comportamento da classe burguesa que explica as características do processo, pois a burguesia é um produto do processo de transição.

Revista Aurora: Como se daria então a relação entre Estado e Sociedade Civil no processo de formação do Estado brasileiro?

Décio Saes: Primeiro, devo dizer que não trabalho com o conceito de sociedade civil, trabalho com o conceito de estrutura jurídico-política e de estrutura econômica. Então, vou dizer como se dá a relação entre tais estruturas: você tem entre 1888 e 1891 a formação de uma estrutura jurídico capitalista em nível nacional, um Estado que declara o caráter absoluto da propriedade privada. Qualquer um pode vender ou comprar sem nenhuma cláusula condicional mobiliária ou imobiliária. Atribui-se capacidade jurídica independente da condição sócio econômica. Este Estado cria condições para formação de um mercado de trabalho em que as pessoas podem vender a força de trabalho em qualquer lugar, podendo se mover livremente no território nacional. Cria-se oportunidades de investimento na economia: a propriedade sobre o escravo era um dos maiores obstáculos à acumulação de capital, dado que a única caução aceita pelo sistema financeiro escravagista era o próprio escravo. Não era possível fornecer como caução hipotecária uma propriedade rural ou urbana. Isto não era aceito como garantia hipotecária era o plantel de escravos. Todo esse capital fictício que era o capital escravo desapareceu de um dia para outro. Isso representou um desbloqueio da economia; agora ninguém mais podia mobilizar capital moeda a partir da propriedade sobre o escravo. Os agentes econômicos teriam de buscar outras oportunidades de investimento, estava aberto o espaço para atividades manufatureiras, comercialização de produtos agrícolas, boa parte do dinheiro foi para a comercialização do café.
Assim, está formado um Estado burguês a nível nacional, mas você tem uma estrutura econômica que ainda não é capitalista e aí que tipo de estrutura econômica você tem? Uma estrutura econômica tipicamente feudal, ela domina o campo, as relações de produção são servis, o camponês é dependente do proprietário da terra, ele tem a posse da terra, mas tem uma série de obrigações para com o senhor. Há estrutura econômica caracteristicamente feudal complementada por um quisto urbano manufatureiro. Veja! Não industrial. Então você tem um Estado burguês moderno defasado com relação a uma estrutura predominantemente feudal, este Estado criou condições para que haja uma revolução econômica. Por quê? Ele desbloqueou a mão de obra e o capital ao abolir a escravidão; e modernizou as relações de propriedade, cada um pode vender sua força de trabalho livremente. Assim, estão criadas as condições para o surgimento da grande indústria moderna. Inicia-se um período de expansão das atividades manufatureiras, e depois de lenta transformação da manufatura em grande indústria moderna.
Um dos papéis do Estado pós-1930 é justamente o de propiciar meios para que a manufatura se converta em grande indústria. Vargas vai subsidiar a importação de máquinas para toda a indústria, que ainda se configura em termos manufatureiros, mormente a têxtil (O período Vargas é um período de mecanização da indústria têxtil. Antes de 1930 os teares eram manuais). Então, lentamente, a estrutura econômica vai se encaminhando para o capitalismo; ou seja, o quisto manufatureiro vai se transformando em parque industrial. Chegamos em 1960 com uma estrutura econômica dominantemente capitalista. A partir da década de 1960, pode-se dizer que há uma correspondência, em termos gerais, entre a estrutura jurídico-política e a estrutura econômica, predominantes no Brasil em escala global.
Antes do estabelecimento dessa correspondência (isto é, durante a fase de transição para o capitalismo), o papel da política populista é fazer funcionar o Estado em termos avançados com relação aos interesses econômicos presentes da classe dominante. O populismo parece uma política que está acima da sociedade; mas esta aparência se explica justamente por esta defasagem. Nenhuma classe dominante economicamente poderosa está implantada dentro da máquina do Estado, embora ela seja politicamente representada pelo Estado perante as classes dominadas . A burguesia nacional não se reconhece enquanto grupo dirigente entre 1930-1964; ela passa a se identificar de fato com o Estado a partir do regime militar, que parece estabelecer uma perfeita sincronia entre o Estado e a classe dominante. Já no período populista não. Não é suficiente constatar que Vargas está tomando, nesse período, decisões a favor da indústria; a burguesia não vê tais medidas como aquilo de que ela precisa. Portanto, não se identifica com as medidas que são pressionadas pela classe média e burocracia.

Revista Aurora: Como você vê a relação entre autocracia e democracia nesse processo de formação do Estado brasileiro, e quais as conseqüências disso nesse novo ciclo que se abriu com a ditadura civil-militar?

Décio Saes: Em primeiro lugar devo dizer que democracia e autocracia são duas formas de regime político numa sociedade capitalista. Ou seja, a classe dominante no capitalismo não tem nenhum compromisso orgânico nem com a forma autocrática nem com a forma democrática; a sua posição pode variar em função de uma série de fatores que emergem em qualquer sociedade capitalista. Em primeiro lugar, a luta pela hegemonia política no seio da classe dominante pode redundar na instauração de um ou outro regime político. Mas, também um ciclo ascensional do movimento popular pode levar à mudança do regime político. A configuração do regime político sempre depende de dois fatores. O primeiro é o teor das lutas no seio do bloco da classe dominante. Se algum setor no seio das classes dominantes contesta a hegemonia de outro setor, e percebe que o regime serve a tal setor, pode haver implantação de uma autocracia que não resulte necessariamente de uma revolução, de um movimento popular em ciclo ascensional. Portanto, nem toda implantação de regime autocrático é resposta ao ciclo popular. Essa resposta pode ocorrer às vezes; ou seja, a ascensão popular pode levar a um regime autocrático. O exemplo clássico é a ditadura bonapartista de 1851. Há uma revolução popular em 1848 e a mesma vai levar a classe dominante a optar pela ditadura militar; constitui-se o chamado segundo império. Em outros momentos, a mudança de regime pode resultar de lutas dentro da classe dominante. Um exemplo seria a queda dos regimes franquista e salazarista, Ambos , na década de 1960, eram regimes ditatoriais, o regime salazarista era uma ditadura civil, e o regime franquista era uma ditadura militar, apoiada no exército e, parcialmente, na Igreja. Estas ditaduras representavam a hegemonia de qual setor? Tanto em Portugal quanto na Espanha, de uma burguesia comercial exportadora de produtos agrícolas (vinho, azeite, etc.) Eram países agrários, Portugal é até hoje, a Espanha já se modernizou. A hegemonia estava nas mãos do setor mais arcaico da classe dominante, que era o capital mercantil voltado, ainda em pleno fim do século XX, para a exportação de produtos que eles produziam deste o século XVIII-XIX. Começa a haver uma movimentação de uma burguesia industrial incipiente no sentido da derrubada desses regimes, com o apoio de países interessados em investir no setor industrial-financeiro. Há revoluções nesses países, no caso da Espanha se cria uma monarquia constitucional, um regime democrático. Essa mudança de regime não se deve à movimentação popular; e sim à movimentação no próprio seio das classes dominantes no sentido de liquidar um regime político que exprimia o que havia de mais arcaico dentro das classes dominantes. O fato de a mudança ter sido conduzida pela classe dominante explica a monarquia constitucional. Isso teria acontecido no caso de um movimento popular? O monarca estaria lá governando ainda?
No caso Português você tem a mesma coisa, o mesmo processo. Há uma crise no bloco das classes dominantes, uma fração da classe dominante não suporta mais a dominação do capital mercantil representado pelo salazarismo, e vai contar com o apoio do exército. O exército não participava do governo ditatorial português, todas as tentativas de levante contra Salazar eram comandadas pelo exército (coisa estranha para nós aqui). Mas foi o que aconteceu em Portugal: o exército representou inicialmente a média burguesia, que depois se organizou num partido popular, e derrubou o regime autocrático que representava o antigo capital mercantil voltado para a exportação daqueles produtos que Portugal continua exportando até hoje. Conto essas histórias para dizer o seguinte: não há nenhuma explicação teórica geral sobre as condições em que a burguesia prefere o regime autocrático ou o democrático. Em certas condições, ela se inclina para um, em outras condições se inclina para outro. Essa variação de condições está ligada à questão das lutas dentro do bloco dominante, ou de um ciclo ascensional do movimento popular. Você tem na história exemplos dos dois tipos, dei o exemplo da ditadura bonapartista e de duas democracias instauradas a partir da luta de setores da burguesia. Não concordo com aquela ideia que aparece em certos autores: a ideia de que a burguesia sempre prefere o regime autocrático. Os que defendem essa tese pensam que se instaura uma democracia apenas por obra das lutas das classes trabalhadoras. Não acredito que seja possível uma fórmula fixa a este respeito. Às vezes, não é uma mobilização das classes trabalhadoras que leva à derrubada de uma ditadura, embora elas possam simpatizar com essa derrubada. Portanto, não é necessariamente a iniciativa da classe trabalhadora que leva à derrubada de um regime autocrático.

Revista Aurora: Como você vê a questão do Partido hoje? Quais as relações que se poderia
estabelecer com os movimentos sociais?

Décio Saes: Você quer saber como vejo politicamente ou sociologicamente?

Revista Aurora: Fique a vontade para expor as duas visões!

Décio Saes: A questão do partido comunista hoje... É evidente que estamos em uma fase em que um partido em quem as classes populares depositaram esperança na época de luta contra a ditadura, um partido de configuração social-democrata, chegou ao governo através de uma aliança de centro esquerda. Nós estamos em um ciclo de governos de centro-esquerda, que revelaram as possibilidades de variação da atuação política de um partido como o PT. Essa mudança de posição dos partidos social- democratas não é um fenômeno específico do Brasil. É preciso lembrar que, para instaurar as políticas neoliberais e realizar a união europeia, os países da Europa latina( Portugal, Espanha, Itália e França) tiveram de assistir à transformação dos seus partidos socialistas. Esses partidos, a partir dos anos 1980, reviram suas orientações políticas e passaram a defender programas neoliberais de não intervenção do Estado na economia, e a defender a unificação da Europa (o que iria inclusive vitimar esses mesmos países, o povo desses países, não necessariamente as classes dominantes destes países) Os partidos socialistas se transformaram com uma rapidez extraordinária: até meados da década de 1970 defendiam a transição para o socialismo, e apresentavam programas eleitorais de transição.
Quando o presidente Miterrand foi eleito, no seu programa de governo havia uma lista de 200 nacionalizações das maiores empresas bancárias, industriais e de serviços da França. Tendo assumido o governo, em questão de dois anos, houve uma mudança de orientação. O partido assumiu uma orientação econômica neoliberal e aderiu ao projeto da Europa unida. Temos então quatro países onde um partido social democrata mudou da água para o vinho em dez anos. Esse fenômeno, para quem observa as sociedades capitalistas, não é novo. Ele também veio a ocorrer caso brasileiro pelo seguinte: o regime militar não teve tempo de aplicar políticas neoliberais, esboçou uma passagem ao neoliberalismo depois de ter sido um regime que apoiava práticas intervencionistas. O setor público se expandiu imensamente no regime militar, a Petrobras se tornou um gigante nesse período. O setor energético se expandiu enormemente com a criação de Itaipu. As indústrias de equipamento militar e aeronáutica também se expandiram no período. Com o fim do período militar e a restauração de um regime político civil, criaram-se condições para a implementação decidida de políticas neoliberais. Essas políticas, no início, foram apoiadas (embora com timidez) pela burguesia, em razão do temor que essa classe social tinha da ascensão futura da esquerda ao poder. Mas tais políticas logo deixaram claro que também vitimariam a burguesia brasileira. A burguesia brasileira entendeu que era chegada a hora do fim do neoliberalismo; para tanto, tinha necessidade de se aliar politicamente à social democracia. Desse modo, o PT foi ideologicamente pressionado pela burguesia a abandonar as suas pautas históricas, e a ajustar seu programa às novas necessidades da burguesia. Não foi o PT que criou, sozinho, o espaço político da aliança de centro-esquerda . Na verdade, o PT era o único partido popular com condições de selar tal aliança. Estamos vivendo um momento em que esta aliança está muito bem soldada, a despeito de a burguesia nunca poder apoiar o PT. Ela apoia o governo petista, financia as campanhas eleitorais e os candidatos à presidência do PT. Mas ela não se compromete diretamente com o partido. Para a esquerda se abriu um novo cenário: um governo de centro esquerda não mais comprometido com o neoliberalismo. Isso não significa a ausência de aspectos neoliberais na política econômica dos governos Lula e Dilma. Mas não há mais compromisso com o Consenso de Washington. Há, evidentemente, a defesa do agro- business, mas há por outro lado a manutenção do caráter nacional do sistema bancário, o que já não ocorre na Argentina desde a época do presidente Menem. O que nós temos é um governo de centro esquerda comandando um desenvolvimento capitalista limitado, possível dentro de um país que pertence ao grupo dos BRICS, que tenta explorar o mercado externo. Agora, cabe à esquerda marxista se apresentar fazendo a crítica ao caráter limitado desse modelo, e propondo uma série de reformas ao Brasil que mobilizem as massas, inclusive com vistas a uma transformação social maior no longo prazo. O capitalismo ainda tem muito chão nesse país; o Brasil é um país com muitas reservas de recursos, com certa estabilidade política e social, uma classe média acomodada e que vai começar a atrair capital estrangeiro, mormente os europeus. Abre-se a possibilidade de um ciclo de desenvolvimento capitalista, não como o da China evidentemente, mas talvez um pouco melhor que o da Rússia que tem uma série de problemas sociais, políticos. Então o horizonte para burguesia interna brasileira não é idílico, mas relativamente promissor. Assim, os dividendos serão distribuídos de forma modesta para os pobres e a classe média. Cabe à esquerda marxista a construção de um novo partido comprometido com a mudança social, com a transformação revolucionária do Brasil; mas um partido consciente de que em um curto prazo é muito difícil a emergência de uma situação revolucionária. Esse partido vai ter que se envolver em um período de acumulação de forças, onde será essencial a crítica às limitações do modelo político do governo de centro esquerda. Não se trata de fazer a crítica de todos os aspectos do governo de centro esquerda.


5 comentários:

Joelma disse...

Gosto imensamente do trecho em que Décio Saes coloca: "....Na verdade, a interpretação althusseriana depende da clara identificação das estruturas fundamentais da sociedade; e, a partir de então, você pode entender que, na transição, a relação de interação recíproca entre as estruturas se interrompe. Uma estrutura vai ter que jogar papel indutor na mudança, ela terá que se antecipar na mudança e daí comandar a transformação da outra estrutura. Ou seja, no fundo, ao caracterizar mudanças sociais como um jogo defasado entre as estruturas, a corrente althusseriana está transpondo para a teoria a ideia que nós encontramos nos textos de Marx e Engels: você precisa fazer uma revolução política antes de transformar a economia...."

Mário disse...

Uma entrevista fantástica! Gostei demais!

Misael disse...

De fato, muito a acrescentar!

Tavim disse...

A marca do curso de Ciências Sociais da FFLCH (Faculdade de Filosofia), foi mesmo delineada por Florestan Fernandes, que realmente defendia que a melhor postura era a observação e análise da realidade social através da combinação de diversas teorias.

Anônimo disse...

Que entrevista!
Podemos até nem concordar com tudo, mas ela é muito ampla e analítica..
Poucas vezes vi algo tão profundo sobre a formação da burguesia neste país.
Sem dúvida vou ler este livro de Décio Saes....

L.P.