O cientista
político Décio Saes é autor de uma obra que combina rigor teórico em elevado
nível de abstração, frequentemente apoiado na pesquisa histórica, com a
investigação de temas centrais da formação social brasileira – sobretudo na
passagem do escravismo para o capitalismo. Concentrando-se no estudo teórico do
Estado e da democracia, foi um dos principais responsáveis pela manutenção do
Estado como objeto central da Ciência Política brasileira, sobretudo quando o
liberalismo buscava questionar a centralidade do seu estatuto teórico.
Articulando
ainda a análise dos fenômenos políticos com uma marcante perspectiva
sociológica, especialmente voltada para o estudo das classes e dos grupos
sociais. Para isso, não apenas apoiou-se na contribuição de Nicos Poulantzas,
como promoveu uma reinterpretação original das teses do marxismo althusseriano,
sobretudo as relativas à teoria da história.
O resultado
foi a abertura de novas possibilidades para uma análise articulada e coerente
da formação social brasileira em seus diferentes momentos históricos. Além
disso, como intelectual engajado, Décio Saes tem elaborado análises
conjunturais fecundas como mostra, por exemplo, o artigo sobre o governo FHC.
Mais recentemente, Décio Saes, sem abandonar os estudos de Ciência Política e
sobre o materialismo histórico, dedicou-se à análise crítica do tema da
cidadania e da educação.
Concedida a
Marcelo Lira Silva, a entrevista abaixo foi publicada originalmente na Revista Aurora, nº 2, páginas 19-32,
jan-jul, 2013.
Revista Aurora: Gostaria de pedir ao professor que falasse um pouco sobre sua
trajetória pessoal e intelectual.
Décio Saes: Eu nasci em São Paulo em 1942, minha família faz parte da classe média
tradicional, de formação universitária; uma família de muitos professores.
Terminei os meus estudos iniciais e logo busquei a Universidade de São Paulo
(USP); a época, essa era a grande opção para a classe média universitária.
Minha opção foi o curso de direito, mas depois, tendo terminado tais estudos,
não me animei com a perspectiva de militar na área jurídica. Então, acabei
fazendo o curso de Ciências Sociais também na USP. Após terminá-lo, fui
contratado pela Unicamp, primeiro como professor de Sociologia, posteriormente
de Ciência Política.
Naquela
época, em 1969, a Pós Graduação não estava implantada nos termos atuais no
Brasil. Desta forma, para fazer a pós-graduação com carga horária, grade
curricular, professores e orientador, era necessário ir para o exterior. Assim,
resolvi fazer meu doutorado na França. O mestrado foi feito no regime antigo
(que não implicava fazer cursos ou disciplinas); nele, eu falava sobre a Classe
Média – que virou um tema recorrente na minha carreira. Na França defendi minha
tese também sobre a Classe Média Política, tendo sido orientado pelo Professor
Alain Touraine, que está aposentado, mas militando ainda. Passei três anos
nestes estudos, voltando então ao Brasil. Fiz minha carreira por 30 anos na
Unicamp (como professor de ciência política), passando por todas as etapas do
percurso universitário: concursos de livre docência, adjunção e titularidade.
Nesse período, acumulei funções por certo tempo na Unicamp, como professor de
Ciência Política, e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), na USP, como
professor de Sociologia Urbana. Após este período, voltei a ser professor
exclusivo da Unicamp e encerrei minha carreira na Universidade Pública em 1998.
Depois disso, fui contratado como pesquisador pela Reitoria da Universidade de
São Paulo e fiz um estágio no Instituto de Estudos Avançados, onde realizei
pesquisas sobre a evolução da cidadania no Brasil. Depois desse período de dois
anos, prestei concurso no ensino privado, tornando-me professor de sociologia
da educação na Universidade Metodista de São Paulo, localizada em São Bernardo
do Campo, e Professor de Ciência Política na Fundação Escola de Comércio
Álvares Penteado. No momento, continuo atuando na UMESP. Meus principais
trabalhos são os livros: Classe Média e Política na Primeira República
Brasileira; Classe média e Sistema Político no Brasil; A Formação do Estado
Burguês no Brasil; Estado e Democracia – Ensaios Teóricos; Democracia; e
República do Capital.
Revista Aurora:Como foi ser estudante universitário e depois docente neste período tão
agitado da história do Brasil?
Décio Saes: Na verdade, neste período eu consegui me subtrair pessoalmente aos
efeitos mais dramáticos da conjuntura política. No período mais turbulento foi
o que se estende de janeiro de (1969 até início do ano de 1974: ou seja, o
período Médici). Ora, no segundo semestre de 1971, saí para o exterior para
fazer o doutorado. Quando voltei já tinha se iniciado a abertura.
O período
anterior do regime militar (1964 - 1968) como já foi reconhecido por muitos
sociólogos, foi um período de muita agitação cultural. A primeira fase do
regime militar foi um período em que o regime político era mais “flexível”. A
agitação cultural e a efervescência cultural aumentaram muito no Brasil naquele
período por força da classe média, mas também pelo que grassava no mundo
desenvolvido. Foi o período das grandes revoluções estudantis
no campus da
Califórnia, em Paris, na Itália, na Alemanha e assim por diante. Então, foi um
período brilhante da vida cultural brasileira, não obstante a presença do
regime militar.
Quando
voltei da França, já estávamos em um período em que os constrangimentos já eram
bem inferiores; já estava havendo uma liberalização inclusive na própria vida
universitária. A Universidade sofreu as conseqüências da instauração do regime
autoritário por um período relativamente curto. Assim, a despeito de muitos
intelectuais terem sido aposentados, ou ido para o exílio, mesmo que alguns
deles não tenham voltado, a universidade conseguiu rapidamente se recompor, de
tal modo que não chegou a uma situação de ruína absoluta como aconteceu em
outros casos de regime autoritário. Com isso, não estou querendo louvar as
“virtudes” do regime militar, mas querendo dizer que , na minha avaliação pessoal,
o conjunto da categoria universitária foi “relativamente poupado” de uma
repressão mais violenta que teria levado à total ruína a vida acadêmica no
Brasil. A minha experiência , nesse terreno , é uma experiência relativamente
tênue. O que realmente a universidade sofreu (de certa maneira, indiretamente)
foi a perseguição aos intelectuais que tinham se envolvido, fora da
universidade, em lutas pela restauração do regime democrático,
confrontando-se abertamente com o regime.
Lamentamos
que a repressão tenha se abatido sobre esses nossos colegas, embora felizmente
uma grande
parte deles tenha logrado, mais tarde, reintegrar-se à vida acadêmica.
Revista Aurora: Seus pais tinham alguma formação política e/ou atuação política?
Décio Saes: Meu pai foi médico, professor universitário, e também atuou durante
décadas na secretaria estadual de saúde, tendo falecido antes da instauração do
regime militar. Era o que se pode chamar um liberal conservador, sempre tomando
posições a favor do partido que a seu ver correspondia aos ideais do
liberalismo, a UDN. Pode-se assim dizer que meu pai sempre foi anti-Varguista:
participou militarmente da revolução de 1932, sendo ferido nesta “revolução
paulista” contra Vargas. Minha mãe não tinha nenhuma militância, era uma típica
dona de casa, e seguia, do ponto de vista ideológico e político, as diretivas
dadas pelo meu pai.
Revista Aurora: Quais foram os caminhos/descaminhos que o levaram à sua posição
presente?
Décio Saes: É uma questão difícil de responder, mas existe um fato que seguramente
foi muito
importante
na minha vivência pessoal. Pertenço a uma família de classe média de
professores
e
burocratas. Uma família tradicional, mas sem nenhum grau elevado de riqueza, uma
família
abastada,
mas não rica, que convivia com famílias da classe alta e da classe dominante.
Freqüentei
colégios onde havia alunos pertencentes a esses estratos sociais, o que gerou
em mim certo ressentimento. Essa convivência forçada, que eu não tinha
desejado, com uma classe social à qual eu não pertencia, levou-me a uma visão
crítica deste meio social. Mais exatamente, eu tinha sentimentos ambivalentes
com relação às classes altas. Eu me sentia, ao mesmo tempo, inferior
socialmente, mas superior culturalmente. Posso dizer que foi essa situação que
me levou para o campo da crítica da sociedade burguesa. Eu não tive contato com
escolas populares; vivia em uma mansão nos Jardins, e em todos os ambientes eu
convivia com a classe alta, não pertencendo a ela. Esse foi um dos fatores da
minha politização. Digamos que os caminhos da politização são tortuosos. Eu me
lembro de que Sartre conta, com certa dose de humor, que o caminho para a sua
politização foi o segundo casamento da sua mãe com o dono de estaleiros em La
Rochelle: “o fato de saber que um grande capitalista dormia todas as noites com
a minha mãe me tornou comunista”.
Revista Aurora: Professor Décio, você já esteve ligado a algum Partido Político?
Décio Saes: Eu não gostaria de responder essa pergunta. Posso dizer que tive uma
militância tênue em um partido que não era legal, mas que não havia se engajado
em formas abertas de confronto ao regime militar e que preferia o trabalho
paciente, político. Tive um pequeno período de militância neste partido que
pregava táticas democráticas de luta contra o regime militar, esta foi a minha
única militância, e foi relativamente curta, inclusive porque no período pós
1969 a repressão se abateu sobre todas as organizações mesmo aquelas que eram 22 consideradas moderadas. Sabe-se que muitas pessoas foram
torturadas (ou morreram), mesmo não pertencendo a organizações radicais.
Revista Aurora: Quais foram suas referências intelectuais e políticas, quando se
aproximou da esquerda?
Décio Saes: Quando entrei na FFLCH (Faculdade de Filosofia), ela vivia em uma fase
de profundo ecletismo teórico e acadêmico. A marca do curso de Ciências Sociais
havia sido impressa na Faculdade pelo grande mestre Florestan Fernandes, que
pensava que a melhor postura a se tomar no campo da observação e análise da
realidade social era a combinação dos métodos ligados a diversas posições
teóricas. Essa orientação era predominante na faculdade.
Um clima
mais favorável a definições precisas no campo teórico só começou a se instalar
a partir de 1968. Até então, o clima era de grande ecletismo; e nós, alunos,
combinávamos diferentes autores, de diferentes tendências. Afinal, nós víamos
Florestan Fernandes e seus discípulos praticando esse ecletismo. Isto vinha da
sociologia francesa e de certa maneira rebateu na faculdade de filosofia graças
à presença do francês Roger Bastide, de quem Florestan Fernandes foi assistente.
A partir de 1967–1968, o ecletismo teórico foi se tornando impossível por conta
do movimento estudantil, que começou a pressionar a categoria docente por uma definição
teórica mais rigorosa, mais precisa. E nesse ponto justamente chegou ao Brasil
o pensamento de uma nova corrente do marxismo europeu, mais especificamente
francês, que era a corrente liderada pelo filósofo Louis Althusser. Eu
rapidamente me interessei por tal filósofo, que era influenciado pelas teses do
estruturalismo, muito forte na França no campo da antropologia com Levy-Strauss
e da linguística com Ferdinand Saussure, O estruturalismo repercutiu mesmo
dentro do marxismo e essa subcorrente surgiu tendo como líder Althusser. Essa
corrente, nos casos de São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e de outros estados,
repercutiu no seio da categoria docente, nossos professores começaram a ser
influenciados por ela. Nós, discentes, também passamos a nos filiar a esta
corrente diretamente, sem que necessariamente nos fosse sugerido. Ao fazer meu
doutorado, era um debutante nos estudos althusserianos.
Chegando a
Paris, procurei apurar qual era a inserção acadêmica dos membros da corrente althusseriana,
e a seguir fui inscrever-me nos cursos dos professores que pertenciam a esta vertente.
Tive o privilégio da escolha tanto na École Pratique des Hautes Études quanto
na Sorbonne, pois, embora meu orientador não pertencesse à corrente
althusseriana, tratava-se de um professor liberal, generoso, que parecia de
fato compreender o que se passava com os estudantes. Seu único desejo era que
cada um fizesse o melhor possível dentro do caminho teórico que havia sido
escolhido. Assim, pude trabalhar com toda a liberdade, escrevendo meu doutorado
e todos meus trabalhos posteriores dentro da perspectiva althusseriana.
Revista Aurora: Pode-se dizer que você foi um dos responsáveis pela entrada e difusão
do
pensamento
do Althusser no Brasil?
Décio Saes: Na fase mais recente, talvez. Há uma geração dez anos mais velha que
começou este trabalho. Eu pertenço à segunda geração encarregada da difusão do
pensamento althusseriano; os mais velhos foram influenciados pela velha guarda
e os mais jovens foram influenciados por mim e outros colegas.
Revista Aurora: Fale um pouco sobre a questão do livro Formação do Estado burguês no
Brasil.
Décio Saes: Eu escrevi este livro já completamente influenciado e militando dentro
do marxismo althusseriano. Eu queria de certa maneira revolucionar os estudos
sobre a revolução burguesa no Brasil a partir do enfoque althusseriano. Até
aquele momento havia outra visão da Revolução burguesa no Brasil, predominante:
o marco da revolução burguesa no Brasil teria sido a revolução de 1930, pois
supunha-se que , nessa conjuntura , a burguesia industrial teria tomado o poder
político. Assim, em muitos livros marxistas mais antigos, estava presente a
ideia de que o marco da passagem para o capitalismo no Brasil teria sido a
revolução de 1930. Como eu trabalhava no marco da teoria althusseriana, eu
colocava outra questão: em que momento se forma uma estrutura jurídico-política
de caráter capitalista no Brasil? Eu não colocava a questão de saber em que
momento a burguesia industrial havia tomado o poder, a minha pergunta era: em
que momento teria surgido um Estado burguês moderno no Brasil? O foco da
pesquisa passava, portanto, a ser, o processo de emergência de uma estrutura
jurídico-política capitalista no Brasil.
Na ótica
althusseriana, seria necessário primeiro haver uma estrutura jurídico-político
capitalista para que depois uma estrutura econômica capitalista se tornasse
dominante. Então, no momento da formação dessa estrutura jurídico-política, não
existiria uma burguesia industrial para tomar o poder político. A burguesia
industrial, na visão althusseriana, seria ela mesmo resultado da implantação de
uma estrutura jurídico-político capitalista. Eu apliquei esse esquema teórico althusseriano
da transição ao caso brasileiro e, observando os fatos, conclui que o Estado burguês
moderno, no caso brasileiro, tinha se formado mediante um processo histórico
que envolvia a abolição da escravidão, a derrubada do estado imperial
escravagista e a organização de um novo estado republicano. Então, a revolução
política burguesa no Brasil teria ocorrido entre 1888 e 1891 e não em 1930 como
defendia, por exemplo, Nelson Werneck Sodré. Eu antecipei, na análise do
processo histórico, o momento da revolução política burguesa. Na minha obra,
ela aparece situada entre 1888 e 1891. Essa é a primeira novidade deste
trabalho; a segunda é que eu não atribuo à burguesia industrial o caráter de
força dirigente nessa revolução burguesa, afinal ela não existe entre 1888 e
1891. Havia alguns donos de manufaturas, mas não se pode sequer falar da
existência de uma burguesia manufatureira, de caráter pré-industrial.
Revista Aurora: Pode-se falar em uma burguesia agrária no Brasil?
Décio Saes: Não! Afinal, não havia trabalho assalariado na área rural. Se houvesse
arrendamento de terras pelo proprietário fundiário a um empresário capitalista
e assalariamento no setor agrário, teríamos uma burguesia rural, como a que
existe hoje no interior de São Paulo. Mas o arrendamento de
terras pelo latifundiário, conjugado ao emprego de trabalhadores assalariados, não
existia naquela época. O que determinou o fim do Estado escravagista foi a
combinação da emergência de um movimento abolicionista republicano de classe
média com o movimento de revolta escrava. Essa movimento de revolta, na década
de 1880 , passou a ser dirigido pela classe média urbana, cujo objetivo central
era derrubar o Estado escravista e instaurar a cidadania, e não, resolver a
questão social e material do negro. Esse movimento era pequeno em tamanho, mas
tinha enorme poder de pressão, já que abrigava estudantes universitários,
profissionais liberais e, sobretudo militares. Estes últimos tiveram um papel
muito importante como representantes da classe média. Na crise do escravismo,
os militares se recusaram a perseguir os escravos, participaram dos clubes
abolicionistas e tiveram forte presença na derrubada no regime monárquico. Este
foi o resultado da ação da média oficialidade do exército que colocava os
generais na parede dizendo: “ou vocês participam da derrubada ou serão presos
imediatamente”. Esta média oficialidade, que militou no abolicionismo e no
republicanismo, foi a vanguarda na derrubada no Estado imperial. Mas essa
vanguarda representava os interesses da classe média, para a qual um país das
dimensões do Brasil, com todas as suas riquezas, não podia viver sob um sistema
político tão atrasado. Boa parte dessa classe média era egressa da classe
dominante, mas tinha feito sua entrada no mundo da cultura. Os seus membros
tinham ido estudar no exterior e voltavam com a ideia revolucionária de
derrubar o Estado escravagista imperial. Portanto, a intelectualidade de classe
média e os militares tiveram a maior importância na derrubada no Estado
escravagista.
Comte
influenciou toda essa geração de intelectuais e militares brasileiros, pois se
colocava claramente contra a escravidão e dizia a seus jovens discípulos
brasileiros que não era possível admitir um fenômeno como a escravidão em um
país como o Brasil. Ele dizia: “vocês tem a obrigação de derrubar essa
instituição infame e vil”. Não houve, no caso brasileiro, uma revolução tão
massiva, com participação de massa como na revolução francesa; mas não podemos
nos esquecer de que a massa escrava que se evadiu dos latifúndios é parte
importante desse movimento. Foi essa evasão organizada dos negros das fazendas
que colocou o gabinete imperial contra a parede e o fez decretar o fim da
escravidão.
Revista Aurora: Como você vê as relações entre essas camadas médias urbanas e as
oligarquias regionais, já enraizadas na cultura política?
Décio Saes: Logo depois da abolição e da proclamação da república, sobrevém um
período em que as lideranças revolucionárias de classe média entram em
retração, porque se estabelece o domínio das oligarquias regionais. Desse ponto
de vista, a revolução aparece para a vanguarda republicana como uma espécie de
fracasso histórico-político. Por isso, é simbólico e emblemático o suicídio de
Silva Jardim se jogando na boca do Vesúvio depois da Abolição e da derrubada do
Estado imperial. Jardim foi um grande líder republicano, mas não conseguiu ser eleito
deputado na província fluminense logo após a instauração da república: o cerco
que as oligarquias fizeram à sua figura e a outros líderes
radicais de classe média levou a uma espécie de retração de classe. Aníbal
Falcão desaparece da cena, muitos militares mais radicais também desaparecem e
não vão participar dos governos federais após o interregno militar comandado por
Floriano Peixoto. É com a ascensão dos paulistas ao governo federal que se
instaura um período que podemos chamar de “termidor brasileiro”, a fase
jacobina tendo sido aquela que se estendeu de 1888 a 1891. Depois dessa fase,
começa a contra- revolução. As oligarquias paulista e mineira se estabelecem
nacionalmente; e depois as oligarquias regionais se estabelecem em cada estado.
A partir daí, durante algumas décadas (pelo menos, três), é como se a classe
média estivesse acomodada à hegemonia das oligarquias. Na verdade, ela não se
acomodou de um modo tão simples; ela vai participar freqüentemente das lutas
das dissidências oligárquicas contra o grupo oligárquico no poder. Este foi o
modo de participação política possível naquele contexto histórico. No período
oligárquico, a classe média se mobilizava em função de lutas contra um grupo
situacionista qualquer, que dominava os estados ou o governo federal, mas essa
participação tinha um caráter limitado, porque não questionava a dominação
oligárquica.
Começa-se a
notar certa inquietação na classe média a partir da década de 1920. E por quê? Porque
a urbanização se intensifica. Os efeitos do nascimento da indústria começam a
se fazer sentir. A própria classe média começa a se expandir, de certo modo
começa a se tornar mais plebéia, ocupar a franja inferior do aparelho de
serviços urbanos. Desse modo, essa classe média começa a se aproximar de uma
postura, algo intuitiva e não programática, de contestação da dominação
oligárquica. O fenômeno do tenentismo exprime um pouco a emergência dessa postura.
Em geral, os tenentes pertenciam à classe média e começavam a criticar a
dominação política dos grupos agro- exportadores, mas ainda sem ter
propriamente um projeto de industrialização do país. De certo modo, as revoltas
de 1922 e 1924 , bem como a Revolução de 1930, exprimem de uma maneira tortuosa
esse desejo de mudança social e modernização do país, que não se mostra com
clareza num projeto propriamente de industrialização, mas que aparece
abertamente na aspiração a um modo moderno de vida, a um consumo de melhor qualidade,
à melhoria do padrão de vida urbana, de habitação, transporte, saúde, etc.
Então a classe média entra no seu ciclo político ascensional, mais uma vez pela
via da ação militar.
Como, em
1888-91, ela foi politicamente representada pelo exército na derrubada do
regime monárquico, a partir da década de 1920 a primeira forma de expressão dos
ideais da classe média é o movimento tenentista. Esse tipo de agitação de
classe média chega ao auge na revolução de 1930, que resulta da coligação de
grupos oligárquicos dissidentes com o movimento tenentista (militares de classe
média). O importante é que, a partir de 1930, a exportação de produtos agrícolas
deixou de ser o enfoque central da política governamental. Assim, surgiram as condições
para uma política de industrialização, primeiro no Estado Novo, depois na
década de 1950. Surgiram também as condições para a escola pública, gratuita e
obrigatória, uma típica aspiração de classe média que foi implantada em 1931;
também é legalizada a atuação sindical em 1930. Neste momento, desenvolve-se o
ensino universitário, pode-se dizer que o surgimento da universidade se deu
praticamente nesta década (anos 1930). Então, todas as reivindicações da classe
média começam a ser implementadas nesse período posterior a 1930, e a
burocracia civil e militar desse período (1930-1964) exprime de um modo geral
essas aspirações. Essa é a característica política central desse
período que nós nomeamos “Período nacional-populista”. Surgem governos que
agora não traduzem mais os ideais da antiga classe dominante, ligada à exportação
de produtos agrícolas para o exterior. Agora, há outras prioridades; e o Brasil
vai se encaminhando para se tornar uma sociedade capitalista moderna. Desta
forma, podemos dizer que o ciclo político ascensional da classe média se esboça
a partir da década de 1920, se inicia formalmente com a revolução de 1930 e se
encerra com o golpe militar de 1964.
Neste
período 1930-1064, foram os interesses da classe média que impulsionaram o
Estado no sentido da modernização, urbanização, implementação de políticas
sociais e assim por diante. Não havia uma burguesia industrial suficientemente
forte e autônoma frente ao exterior que pudesse comandar esse processo. Foi a
burocracia, interpretando os anseios da população urbana, que teve que dar
conta disso. Isso define a originalidade, como também explica a instabilidade
política do populismo. Pois é uma política de Estado que responde às aspirações
de um grupo que não é classe dominante; tal política não é abertamente
hostilizada pela burguesia industrial, mas também não é por ela apoiada. A
burguesia industrial por vezes hesitou em apoiar a implantação da indústria de
base no Brasil, porque supunha que o resultado seria o encarecimento dos nossos
custos, dada a escala necessariamente reduzida da produção interna de insumos
industriais e maquinaria. A burguesia industrial hesitava, portanto com relação
à política de industrialização. Eram a burocracia e a classe média que buscavam
implementá-la.
Esse ciclo
político se interrompeu em 1964; e voltamos para uma política dominada pela
classe dominante. Agora não mais aquela exportadora de produtos agrícolas, mas
uma associada ao capital estrangeiro, produtora de automóveis,
eletrodomésticos, etc. A ligação entre Estado e classe dominante volta a se
tornar orgânica com o golpe de 1964; assim se encerrou o ciclo
político
ascensional da classe média.
Revista Aurora: Então você concorda com os teóricos que dizem que ali houve um colapso
do pacto populista?
Décio Saes: Concordo, concordo plenamente. O golpe de 1964 teve essa
característica.
Revista Aurora: De acordo com Carlos Nelson Coutinho, na literatura brasileira se
consolidaram três paradigmas na leitura do Brasil: a) o primeiro, que adota a categoria
da revolução passiva; b) o segundo que adota as categoria da via prussiana; e
c) o que adota a categoria da modernização conservadora. Em qual desses
paradigmas poderíamos localizar sua obra?
Décio Saes: Nenhum dos três! Afinal estou propondo um quarto paradigma que se
baseia na teoria da transição do capitalismo formulada pelo grupo
althusseriano.
Revista Aurora: Quais as discordâncias com estes outros paradigmas?
Décio Saes: A diferença é que os outros não trabalham a mudança social como um
jogo social entre as estruturas da sociedade. Na verdade, a interpretação
althusseriana depende da clara identificação das estruturas fundamentais da
sociedade; e, a partir de então, você pode entender que, na
transição, a relação de interação recíproca entre as estruturas se interrompe.
Uma estrutura vai ter que jogar papel indutor na mudança, ela terá que se
antecipar na mudança e daí comandar a transformação da outra estrutura. Ou
seja, no fundo, ao caracterizar mudanças sociais como um jogo defasado entre as
estruturas, a corrente althusseriana está transpondo para a teoria a ideia que
nós encontramos nos textos de Marx e Engels: você precisa fazer uma revolução
política antes de transformar a economia. A revolução francesa foi feita antes que
a França se tornasse uma nação capitalista. A revolução inglesa do século XVII
se deu antes que a grande indústria nascesse. A revolução de 1848 na Alemanha
extinguiu a servidão e criou o Estado moderno antes que o país se tornasse uma
grande nação industrial. Entretanto, essa visão da transição para o capitalismo
e da revolução burguesa como jogo defasado entre estrutura político-jurídico e
estrutura econômica, a primeira se antecipando à segunda, essa visão se adequa
à observação de fatos históricos que nós já conhecíamos há muito tempo. Que não
havia capitalismo na França em nível econômico quando da revolução francesa;
que não havia capitalismo na Inglaterra quando da sua revolução política; que
não havia capitalismo na Alemanha antes da revolução de 1848. Assim, a teoria
althusseriana da transição é a que dá mais relevo a esses fatos, porque leva em
conta o jogo defasado entre as estruturas. As demais correntes trabalham muito
com a observação da estrutura econômica e com o processo de formação de uma
nova classe dominante: a burguesia. Na minha visão, a burguesia industrial aparece
como resultado final do processo, e não como ponto de partida do processo.
Muito frequentemente, nas análises das correntes que você citou, há uma grande
preocupação em se caracterizar o processo a partir de uma caracterização do
comportamento da burguesia: se a burguesia se comportar de um modo, o processo
será de um tipo determinado. Na minha visão, não é o comportamento da classe
burguesa que explica as características do processo, pois a burguesia é um
produto do processo de transição.
Revista Aurora: Como se daria então a relação entre Estado e Sociedade Civil no
processo de formação do Estado brasileiro?
Décio Saes: Primeiro, devo dizer que não trabalho com o conceito de sociedade
civil, trabalho com o conceito de estrutura jurídico-política e de estrutura
econômica. Então, vou dizer como se dá a relação entre tais estruturas: você
tem entre 1888 e 1891 a formação de uma estrutura jurídico capitalista em nível
nacional, um Estado que declara o caráter absoluto da propriedade privada.
Qualquer um pode vender ou comprar sem nenhuma cláusula condicional mobiliária ou
imobiliária. Atribui-se capacidade jurídica independente da condição sócio
econômica. Este Estado cria condições para formação de um mercado de trabalho
em que as pessoas podem vender a força de trabalho em qualquer lugar, podendo
se mover livremente no território nacional. Cria-se oportunidades de
investimento na economia: a propriedade sobre o escravo era um dos maiores
obstáculos à acumulação de capital, dado que a única caução aceita pelo sistema
financeiro escravagista era o próprio escravo. Não era possível fornecer como
caução hipotecária uma propriedade rural ou urbana. Isto não era aceito como
garantia hipotecária era o plantel de escravos. Todo esse capital fictício que
era o capital escravo desapareceu de um dia para outro. Isso
representou um desbloqueio da economia; agora ninguém mais podia mobilizar capital
moeda a partir da propriedade sobre o escravo. Os agentes econômicos teriam de
buscar outras oportunidades de investimento, estava aberto o espaço para
atividades manufatureiras, comercialização de produtos agrícolas, boa parte do
dinheiro foi para a comercialização do café.
Assim, está
formado um Estado burguês a nível nacional, mas você tem uma estrutura econômica
que ainda não é capitalista e aí que tipo de estrutura econômica você tem? Uma estrutura
econômica tipicamente feudal, ela domina o campo, as relações de produção são servis,
o camponês é dependente do proprietário da terra, ele tem a posse da terra, mas
tem uma série de obrigações para com o senhor. Há estrutura econômica
caracteristicamente feudal complementada por um quisto urbano manufatureiro.
Veja! Não industrial. Então você tem um Estado burguês moderno defasado com
relação a uma estrutura predominantemente feudal, este Estado criou condições
para que haja uma revolução econômica. Por quê? Ele desbloqueou a mão de obra e
o capital ao abolir a escravidão; e modernizou as relações de propriedade, cada
um pode vender sua força de trabalho livremente. Assim, estão criadas as
condições para o surgimento da grande indústria moderna. Inicia-se um período
de expansão das atividades manufatureiras, e depois de lenta transformação da
manufatura em grande indústria moderna.
Um dos
papéis do Estado pós-1930 é justamente o de propiciar meios para que a
manufatura se converta em grande indústria. Vargas vai subsidiar a importação
de máquinas para toda a indústria, que ainda se configura em termos
manufatureiros, mormente a têxtil (O período Vargas é um período de mecanização
da indústria têxtil. Antes de 1930 os teares eram manuais). Então, lentamente,
a estrutura econômica vai se encaminhando para o capitalismo; ou seja, o quisto
manufatureiro vai se transformando em parque industrial. Chegamos em 1960 com uma
estrutura econômica dominantemente capitalista. A partir da década de 1960,
pode-se dizer que há uma correspondência, em termos gerais, entre a estrutura
jurídico-política e a estrutura econômica, predominantes no Brasil em escala
global.
Antes do
estabelecimento dessa correspondência (isto é, durante a fase de transição para
o capitalismo), o papel da política populista é fazer funcionar o Estado em
termos avançados com relação aos interesses econômicos presentes da classe
dominante. O populismo parece uma política que está acima da sociedade; mas
esta aparência se explica justamente por esta defasagem. Nenhuma classe
dominante economicamente poderosa está implantada dentro da máquina do Estado,
embora ela seja politicamente representada pelo Estado perante as classes dominadas
. A burguesia nacional não se reconhece enquanto grupo dirigente entre 1930-1964;
ela passa a se identificar de fato com o Estado a partir do regime militar, que
parece estabelecer uma perfeita sincronia entre o Estado e a classe dominante.
Já no período populista não. Não é suficiente constatar que Vargas está
tomando, nesse período, decisões a favor da indústria; a burguesia não vê tais
medidas como aquilo de que ela precisa. Portanto, não se identifica com as
medidas que são pressionadas pela classe média e burocracia.
Revista Aurora: Como você vê a relação entre autocracia e democracia nesse processo de
formação do Estado brasileiro, e quais as conseqüências disso nesse novo ciclo
que se abriu com a ditadura civil-militar?
Décio Saes: Em primeiro lugar devo dizer que democracia e autocracia são duas
formas de regime político numa sociedade capitalista. Ou seja, a classe
dominante no capitalismo não tem nenhum compromisso orgânico nem com a forma
autocrática nem com a forma democrática; a sua posição pode variar em função de
uma série de fatores que emergem em qualquer sociedade capitalista. Em primeiro
lugar, a luta pela hegemonia política no seio da classe dominante pode redundar
na instauração de um ou outro regime político. Mas, também um ciclo ascensional
do movimento popular pode levar à mudança do regime político. A configuração do
regime político sempre depende de dois fatores. O primeiro é o teor das lutas
no seio do bloco da classe dominante. Se algum setor no seio das classes dominantes
contesta a hegemonia de outro setor, e percebe que o regime serve a tal setor,
pode haver implantação de uma autocracia que não resulte necessariamente de uma
revolução, de um movimento popular em ciclo ascensional. Portanto, nem toda
implantação de regime autocrático é resposta ao ciclo popular. Essa resposta
pode ocorrer às vezes; ou seja, a ascensão popular pode levar a um regime
autocrático. O exemplo clássico é a ditadura bonapartista de 1851. Há uma
revolução popular em 1848 e a mesma vai levar a classe dominante a optar pela
ditadura militar; constitui-se o chamado segundo império. Em outros momentos, a
mudança de regime pode resultar de lutas dentro da classe dominante. Um exemplo
seria a queda dos regimes franquista e salazarista, Ambos , na década de 1960,
eram regimes ditatoriais, o regime salazarista era uma ditadura civil, e o
regime franquista era uma ditadura militar, apoiada no exército e,
parcialmente, na Igreja. Estas ditaduras representavam a hegemonia de qual
setor? Tanto em Portugal quanto na Espanha, de uma burguesia comercial
exportadora de produtos agrícolas (vinho, azeite, etc.) Eram países agrários,
Portugal é até hoje, a Espanha já se modernizou. A hegemonia estava nas mãos do
setor mais arcaico da classe dominante, que era o capital mercantil voltado,
ainda em pleno fim do século XX, para a exportação de produtos que eles
produziam deste o século XVIII-XIX. Começa a haver uma movimentação de uma
burguesia industrial incipiente no sentido da derrubada desses regimes, com o
apoio de países interessados em investir no setor industrial-financeiro. Há
revoluções nesses países, no caso da Espanha se cria uma monarquia
constitucional, um regime democrático. Essa mudança de regime não se deve à
movimentação popular; e sim à movimentação no próprio seio das classes
dominantes no sentido de liquidar um regime político que exprimia o que havia
de mais arcaico dentro das classes dominantes. O fato de a mudança ter sido
conduzida pela classe dominante explica a monarquia constitucional. Isso teria
acontecido no caso de um movimento popular? O monarca estaria lá governando
ainda?
No caso
Português você tem a mesma coisa, o mesmo processo. Há uma crise no bloco das classes
dominantes, uma fração da classe dominante não suporta mais a dominação do
capital mercantil representado pelo salazarismo, e vai contar com o apoio do
exército. O exército não participava do governo ditatorial português, todas as
tentativas de levante contra Salazar eram comandadas pelo exército (coisa
estranha para nós aqui). Mas foi o que aconteceu em Portugal: o exército
representou inicialmente a média burguesia, que depois se organizou num partido
popular, e derrubou o regime autocrático que representava o
antigo capital mercantil voltado para a exportação daqueles produtos que
Portugal continua exportando até hoje. Conto essas histórias para dizer o
seguinte: não há nenhuma explicação teórica geral sobre as condições em que a
burguesia prefere o regime autocrático ou o democrático. Em certas condições,
ela se inclina para um, em outras condições se inclina para outro. Essa
variação de condições está ligada à questão das lutas dentro do bloco
dominante, ou de um ciclo ascensional do movimento popular. Você tem na
história exemplos dos dois tipos, dei o exemplo da ditadura bonapartista e de
duas democracias instauradas a partir da luta de setores da burguesia. Não
concordo com aquela ideia que aparece em certos autores: a ideia de que a
burguesia sempre prefere o regime autocrático. Os que defendem essa tese pensam
que se instaura uma democracia apenas por obra das lutas das classes
trabalhadoras. Não acredito que seja possível uma fórmula fixa a este respeito.
Às vezes, não é uma mobilização das classes trabalhadoras que leva à derrubada
de uma ditadura, embora elas possam simpatizar com essa derrubada. Portanto,
não é necessariamente a iniciativa da classe trabalhadora que leva à derrubada
de um regime autocrático.
Revista Aurora: Como você vê a questão do Partido hoje? Quais as relações que se
poderia
estabelecer
com os movimentos sociais?
Décio Saes: Você quer saber como vejo politicamente ou sociologicamente?
Revista Aurora: Fique a vontade para expor as duas visões!
Décio Saes: A questão do partido comunista hoje... É evidente que estamos em uma
fase em que um partido em quem as classes populares depositaram esperança na
época de luta contra a ditadura, um partido de configuração social-democrata,
chegou ao governo através de uma aliança de centro esquerda. Nós estamos em um
ciclo de governos de centro-esquerda, que revelaram as possibilidades de
variação da atuação política de um partido como o PT. Essa mudança de posição
dos partidos social- democratas não é um fenômeno específico do Brasil. É
preciso lembrar que, para instaurar as políticas neoliberais e realizar a união
europeia, os países da Europa latina( Portugal, Espanha, Itália e França)
tiveram de assistir à transformação dos seus partidos socialistas. Esses
partidos, a partir dos anos 1980, reviram suas orientações políticas e passaram
a defender programas neoliberais de não intervenção do Estado na economia, e a
defender a unificação da Europa (o que iria inclusive vitimar esses mesmos
países, o povo desses países, não necessariamente as classes dominantes destes
países) Os partidos socialistas se transformaram com uma rapidez
extraordinária: até meados da década de 1970 defendiam a transição para o socialismo,
e apresentavam programas eleitorais de transição.
Quando o
presidente Miterrand foi eleito, no seu programa de governo havia uma lista de 200
nacionalizações das maiores empresas bancárias, industriais e de serviços da
França. Tendo assumido o governo, em questão de dois anos, houve uma mudança de
orientação. O partido assumiu uma orientação econômica neoliberal e aderiu ao
projeto da Europa unida. Temos então quatro países onde um partido social
democrata mudou da água para o vinho em dez anos. Esse fenômeno,
para quem observa as sociedades capitalistas, não é novo. Ele também veio a
ocorrer caso brasileiro pelo seguinte: o regime militar não teve tempo de
aplicar políticas neoliberais, esboçou uma passagem ao neoliberalismo depois de
ter sido um regime que apoiava práticas intervencionistas. O setor público se
expandiu imensamente no regime militar, a Petrobras se tornou um gigante nesse
período. O setor energético se expandiu enormemente com a criação de Itaipu. As
indústrias de equipamento militar e aeronáutica também se expandiram no período.
Com o fim do período militar e a restauração de um regime político civil, criaram-se
condições para a implementação decidida de políticas neoliberais. Essas
políticas, no início, foram apoiadas (embora com timidez) pela burguesia, em
razão do temor que essa classe social tinha da ascensão futura da esquerda ao
poder. Mas tais políticas logo deixaram claro que também vitimariam a burguesia
brasileira. A burguesia brasileira entendeu que era chegada a hora do fim do
neoliberalismo; para tanto, tinha necessidade de se aliar politicamente à
social democracia. Desse modo, o PT foi ideologicamente pressionado pela
burguesia a abandonar as suas pautas históricas, e a ajustar seu programa às
novas necessidades da burguesia. Não foi o PT que criou, sozinho, o espaço
político da aliança de centro-esquerda . Na verdade, o PT era o único partido
popular com condições de selar tal aliança. Estamos vivendo um momento em que
esta aliança está muito bem soldada, a despeito de a burguesia nunca poder
apoiar o PT. Ela apoia o governo petista, financia as campanhas eleitorais e os
candidatos à presidência do PT. Mas ela não se compromete diretamente com o
partido. Para a esquerda se abriu um novo cenário: um governo de centro
esquerda não mais comprometido com o neoliberalismo. Isso não significa a
ausência de aspectos neoliberais na política econômica dos governos Lula e Dilma.
Mas não há mais compromisso com o Consenso de Washington. Há, evidentemente, a defesa
do agro- business, mas há por outro lado a manutenção do caráter nacional do
sistema bancário, o que já não ocorre na Argentina desde a época do presidente
Menem. O que nós temos é um governo de centro esquerda comandando um
desenvolvimento capitalista limitado, possível dentro de um país que pertence
ao grupo dos BRICS, que tenta explorar o mercado externo. Agora, cabe à esquerda
marxista se apresentar fazendo a crítica ao caráter limitado desse modelo, e
propondo uma série de reformas ao Brasil que mobilizem as massas, inclusive com
vistas a uma transformação social maior no longo prazo. O capitalismo ainda tem
muito chão nesse país; o Brasil é um país com muitas reservas de recursos, com
certa estabilidade política e social, uma classe média acomodada e que vai
começar a atrair capital estrangeiro, mormente os europeus. Abre-se a
possibilidade de um ciclo de desenvolvimento capitalista, não como o da China
evidentemente, mas talvez um pouco melhor que o da Rússia que tem uma série de
problemas sociais, políticos. Então o horizonte para burguesia interna brasileira
não é idílico, mas relativamente promissor. Assim, os dividendos serão
distribuídos de forma modesta para os pobres e a classe média. Cabe à esquerda
marxista a construção de um novo partido comprometido com a mudança social, com
a transformação revolucionária do Brasil; mas um partido consciente de que em
um curto prazo é muito difícil a emergência de uma situação revolucionária.
Esse partido vai ter que se envolver em um período de acumulação de forças,
onde será essencial a crítica às limitações do modelo político do governo de
centro esquerda. Não se trata de fazer a crítica de todos os aspectos do
governo de centro esquerda.
5 comentários:
Gosto imensamente do trecho em que Décio Saes coloca: "....Na verdade, a interpretação althusseriana depende da clara identificação das estruturas fundamentais da sociedade; e, a partir de então, você pode entender que, na transição, a relação de interação recíproca entre as estruturas se interrompe. Uma estrutura vai ter que jogar papel indutor na mudança, ela terá que se antecipar na mudança e daí comandar a transformação da outra estrutura. Ou seja, no fundo, ao caracterizar mudanças sociais como um jogo defasado entre as estruturas, a corrente althusseriana está transpondo para a teoria a ideia que nós encontramos nos textos de Marx e Engels: você precisa fazer uma revolução política antes de transformar a economia...."
Uma entrevista fantástica! Gostei demais!
De fato, muito a acrescentar!
A marca do curso de Ciências Sociais da FFLCH (Faculdade de Filosofia), foi mesmo delineada por Florestan Fernandes, que realmente defendia que a melhor postura era a observação e análise da realidade social através da combinação de diversas teorias.
Que entrevista!
Podemos até nem concordar com tudo, mas ela é muito ampla e analítica..
Poucas vezes vi algo tão profundo sobre a formação da burguesia neste país.
Sem dúvida vou ler este livro de Décio Saes....
L.P.
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