Mais uma tentativa de um conto. Às vezes eu me arrisco nesta seara... Um dia, quem sabe terei como publicar um livro. Este, por exemplo, foi escrito em setembro de 2007 e publicado neste blogue em novembro de 2008.
Anselmo estava pensativo havia dias. Cuidadosamente, Edgard aproximou-se dele.
- Vamos almoçar, cara?
- Não sei... estou sem fome...
- Tenho notado isto, meu caro. O
quê que houve contigo?
Anselmo ajeitou-se na cadeira.
Olhou para o computador. Um ar triste, vago, taciturno.
- Sei lá... não sei... quer
dizer, até sei... será que sei... não... nã...ão tem jeito!
- O quê não tem jeito? –
Perguntou Edgard, curioso.
Anselmo balançou os ombros. Olhou
para o amigo, quase que pedindo ajuda...
- Estou apaixonado. Per... di...
damente... apaixonado, meu chapa...
- Mas o que tem isso? Sei que
você é casado há muito tempo, mas... estar apaixonado é sempre bom. – Olhou
matreiro virando os olhos em torno, e prosseguiu com um sorriso malicioso – Eu
conheço?
- Na... nã... ão, você não
conhece... ou talvez conheça. E não... sei lá. Talvez...
- Mas, quem é afinal? Pooorra,
Anselmo. Vamos festejar. Tomar um chope, voltar de porre à tarde. Isto merece
um brinde! – Aproximou-se de Anselmo e sussurou com malícia – Carne nova no
pedaço... he he, heiiii! Aaah, eu quero saber de tudo... tudinho... quem é a
garotaaa??? Me diz pelo menos o nome dela.
- Aaahhh, não adianta... vou
dizer e você não vai acreditar... Respondeu Anselmo com um ar de desânimo, um
olhar perdido no infinito.
Edgard deu um tapinha nas costas
do amigo.
- Vamuuu lá. Vamos sair um pouco
deste ar viciado de escritório, cara... vamuuu lááá...
Anselmo, relutante levantou da
cadeira, abraçou o amigo, suspirou fundo, jogou o paletó por cima do ombro
direito, displicentemente, e começou a andar em direção à porta.
Caminharam por um bom tempo, até
chegarem ao Bar Luís. Entraram e cumprimentaram os garçons mais conhecidos.
Sentaram e pediram dois chopes escuros.
- Aaah, bem tirado! Iiiisto é que
é chope bem tirado! – Exclamou Edgard – Mas, prossiga, meu... qual é? Ou vai
ficar guardando segredo o resto da vida. Põe pra fora o que o coração diz,
cara... põe pra fora...
Anselmo pigarreou. Balançou a
cabeça e disse:
- Aconteceu... Vi a mulher... e
me acendeu uma paixão louca, doentia, impossível... inatingível. Mas,
aconteceu! Sinal que talvez ainda exista um adolescente dentro de mim, porra!
- Mas por quê tão
impossíííível... tão... inatingíííível... assim? Colé, cara? Nada é impossível.
- O pior é que é! Deixa isso pra
lá... foda-se...
- Ih, não é bem assim, meu...
você tem que acreditar em você mesmo. Se valoriza, cara... se valoriza...
Anselmo pigarreou de novo.
- Você está fumando pra cacete,
num é? Cuidado, bicho. Só na caminhada que a gente deu até aqui você deve ter
fumado uns três... talvez quatro cigarros... com certeza... Cuidado, hein?!
- É melhor mudar de assunto... –
Virando-se para o garçom, exclamou – Êêêiiii, amigoooo, traz o cardápio... quê
qui tem hoje? Se não tiver nada de especial me traz o de sempre... Salsicha
branca com chucrutes... ou kassler??? Éééé’...Kassler... e mais um chope...
escuro... tá? Tinindo. Edgard aproveitou pediu para trazer o de sempre também.
Ele já começava a esboçar um ar
de impaciência. Ajeitou-se na cadeira. Olhou para um traseiro que adentrava o
recinto rebolando. Coçou o nariz com a pontinha do dedo. Virou-se para Anselmo
e falou:
- Tá bom, cara... não vou... não
vou mesmo ficar insistindo com você sobre esta mulher. Xá pra lá! Eu fico aqui
preocupado, mas... veja bem... só estou querendo lhe dar uma força. Seu puto!
Sorriu, sem graça.
Anselmo riu. Riu pela primeira
vez naquele dia. Talvez em muitos dias.
- Lembra da Gleyde?
- Aquela menina que foi
substituir uma secretária de férias? Sei... hummm, então é ela? Onde ela está
agora?
Anselmo soltou um muxoxo,
enquanto balançava a cabeça sorrindo com sarcasmo.
- Que nada, cara... aquilo já
passou... já era... aconteceu, foi um fracasso... meu. Fracasso meu. Cantei,
mas não deu. Ela provocava minha libido. Quando chegava perto de mim eu
ficava... ficava de pau duro! – Apoiou a cabeça no braço, também apoiado na
mesa, mexeu nos cabelos, despenteando-os –... mas passou. É coisa do passado,
esqueci. A gente esquece... às vezes; às vezes se esquece... consegue... também
eu entrei de sola. Ela sabia que eu era casado... sei lá. Porra acontece nas
melhores famílias... de Londres!
Soltou uma gargalhada.
- Ela era bonita, charmosa...
alta, uma mulher interessante. Retrucou Edgard.
Houve um silêncio de alguns
segundos, que mais pareciam uma eternidade. Os chopinhos espumantes chegaram.
Anselmo sorveu um gole. Sentia-se o prazer de beber aquele gole, naquele
instante.
- Você está com medo de outro...
um outro fracasso, Anselmo?
- Não há a menor chance disto
acontecer... não há! Respondeu Anselmo olhando sério o companheiro.
- Então, vai fundo... vai fundo
amigo. Está com medo de separar da Noêmia... é isso, está com medo de abalar
seu casamento de quase trinta anos. Leva numa boa... mulheres não entendem.
Quer dizer, às vezes até entendem, Agnés Varda filmou “Lê bonheur”... lembra?
“As duas faces da felicidade”? Filmaço... puta filme... e ela era uma mulher!
Fez uma breve pausa e prosseguiu:
- ... às vezes elas fingem que
não sabem, mas vão levando... mulher é assim... afinal, levam pica...
há-há[há...gozam sofrendo!!! A dor faz parte da vida delas... biiiichooo... não
vês? Além do mais... fazendo bem feito... com todo cuidado... A Noêmia nem vai
saber. Podes crer!
Mais alguns instantes de
silêncio. Profundo. Goles de lá, goles de cá. Edgard faz um sinal para o
garçom. Mostra dois dedos, os balança pedindo outra rodada.
- Um amigo meu.. me mandou um e-mail. Era um link. Eu fui e gostei... balbuciou Anselmo.
- Já senti... namoro pela
Internet. Ih! Isso tá dando até casamento. Mas... cuidado hem?! Às vezes mandam
fotos falsas. Você vai ver a dona... e num é nada daquilo... A loura vira um a
negona gorda!!! Há-háá- hááá... tem muita enganação nestas coisas de
Internet... Tenho uma amiga que...
Anselmo interrompe abruptamente,
batendo a palma da mão na mesa.
- Não é nada do que você está
pensando, cara... não é nada disso. Não é... puuuta meeerda!
- Então o que é? Não estou
entendendo mais nada. Nadinha. Tô mais por fora do que umbigo de vedete!
- Ih... essa foi velha pra
caraaaalho. Manda outra! Acho que nem tem mais vedete. He-he-he! Essa foi
boa... boooa Edgard!!!
- Tá bem. Tá bem... tô ficando
velho... é o tempo... o tempo passa...
- Era o link de uma cantora americana, linda... cantava uma música...muito
hormônio feminino... você sentia. Aquela boca, tesão, tesão, puro tesão...
Mulher... com “ eme” maiúsculo. Daí fui
entrando em outras músicas dela. Sabe cuméquié... YouTube... você vai navegando... vai descobrindo... vai crescendo.
E foi crescendo a porra da atração... – fez uma pausa –... uma atração que foi
virando paixão... Ta rindo?... rindo de quê?... Ela me enfeitiçou. Eu... eu a
amo com toda a força do meu ser...
Edgard interrompeu Anselmo,
colocou sua mão em cima da dele num gesto de solidariedade. Estava rindo.
- Você me lembrou daquele filme o
filme “O fã”... lembra... com a Lauren Bacall? Um filme em que um sujeito
começa a escrever para uma atriz... famosa... e sua obsessão vai aumentando...
aumentando...
-Tá me chamando de tarado?
Pior... de serial-kiiiller? Pooorra,
onde nós estamos...
Neste momento o garçom chegou com
os pratos. Pediu licença, meio que desajeitado. Eles esperaram acabar o
procedimento. Terminado, Anselmo prosseguiu:
- É sério... amigo... é sério.
Não é uma coisinha à toa. É paixão! Das brabas...
- Mas... o quê qui você fez,
cara, você fez alguma coisa? Escreveu uma carta pra ela? Bateu uma punheta pelo
menos?
-Não briiiinca... é sério. Você
já viu ela cantando “Everything changes”.
Mudou mesmo... mudou tudo pra mim... a partir daquele instante... mudou!
O papo rolou o resto da tarde.
Saíram tropeçando. Nem voltaram para o trabalho. Edgard ligou e deu uma senhora
desculpa, dizendo que havia passado mal e fôra parar no pronto-socorro. E o
Anselmo teve que acompanhá-lo.
No dia seguinte, uma puta duma
ressaca, Edgard chegou cedo no trabalho. Anselmo ainda não havia chegado. Bom,
também era cedo demais. Daí a meia hora tocou o telefone.
- Noêmiaaa!!! Que prazer... há
quanto tempo – uma longa pausa – O quêêêê??? Quando??? Como???
Noêmia aos prantos contou que
Anselmo havia chegado em casa completamente bêbado, tropeçando, chorando e
balbuciando frases e nomes que ela não conseguia compreender, tal o seu estado,
trancou-se no banheiro por algum tempo e acabou, quase que de súbito, no
impulso de um surto, irrompendo pela sala e se atirado pela porta de vidro da
sacada. Do sétimo andar... que o corpo estava no IML... Ela queria uma ajuda,
precisava de ajuda, estava desesperada... que Anselmo deixou apenas uma carta,
lacônica, escrita em papel higiênico, com péssima e trêmula caligrafia, na
tampa da privada... em que falava de sua péssima situação financeira... mas que
no seu bolso foi encontrada uma passagem para Los Angeles... Ainda aos prantos, subitamente Noêmia desligou o
telefone, pedindo para que ele ligasse para ela, assim que pudesse.
Edgard largou o telefone sobre a mesa, recostou-se na
cadeira. Suspirou, bebeu um copo d’água inteirinho, quase que de um gole só.
Seu coração palpitava de forma intensa e desconexa. Suava frio. E pensou com os
seus botões: “E nem o nome dela ele me disse... falou apenas que cantconto:ava ‘Everything changes’... e tudo... tudo
mudou... tudo mudou mesmo! Caramba, nem quero procurar essa porra dessa música
no YouTube... ou em lugar nenhum!...
Já chega o Anselmo... desconjura!”
Clique no link para a música que originou este conto:
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2 comentários:
Amei que você postou novamente este conto que mostra o quanto é de fato um "écrivain" de primeira qualidade!
Tem gente que achava que o final é meio que forçado, mas sabe o queu acho? Acho mesmo que um "bebum" não tem consciência dos seus atos. E ele desesperou-se na medida em que mesmo com uma passagem na mão não sabia como seria recebido, qual seria a reação dela por nem saber da sua existência, o que dizer das suas reais intenções. É "plus ou moins" o que aconteceu no filme da Lauren Bacall: “Obsessão Cega” (The Fan) filme norte-americano de suspense, dirigido por Edward Bianchi e foi lançado nos EUA em maio de 1981, roteiro adaptado do livro homônimo de Bob Handall e interpretado por Michael Biehn, Lauren Bacall e James Garner nos papéis principais.
Douglas Breen (Michael Biehn) é um vendedor de registro solitário e um verdadeiro fã psicopata da atriz Sally Ross (Lauren Bacall), glamorosa e consagrada no Cinema e no Teatro, que em meio a uma crise existencial, prepara-se para estrear um importante musical na Broadway. Todos os dias Douglas escreve as suas cartas de amor para ela.
Mas a única resposta que ele recebe são cartas formais, pois a assistente de Sally nunca entregava as cartas. A sua primeira carta parecia inofensiva, mas cada vez elas ficavam mais assustadoras e passam a ter como inicio “Querida puta” e ameaças à assistente. Então, sua paixão se transforma em obsessão e ódio.
Douglas começa então a atacar as pessoas mais próximas a Sally, sendo a primeira, justamente a sua secretária, abrindo assim o caminho para ele viver essa paixão obsessiva.
Acho que a obsessão de Anselmo, embora não tão grave, tem sua origem, seguramente numa personalidade psicótica...
Olha, não foi à tôa que me formei em Psicologia!
Bom demais Olivieri. Gostei do conto e conto isso pra todo mundo nos quatro cantos do mundo! Brincadeirinhaaaa!
Mas na real, o negócio é que acabo de ler "Everything changes" e acontece que você narra essa história pesada com muita habilidade tornando-a até, por vezes muito engraçada.
Sem mais, aguardo os próximos contos ansiosamente.
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