Amanhecia em Brasília. José não poderia jamais esquecer aquelas nuvens exóticas,
aquela gama de cores maravilhosas.
Estava um tanto quanto frio. Batia aquele vento gelado na face. Por
outro lado José, arrastava com sacrifício uma mala pesada, atravessando aquela
enorme distância gramada rumo ao ponto de ônibus mais próximo. Se é que poderia
haver alguma coisa próxima naquela imensidão.
Apesar de toda dificuldade chegou finalmente ao que seria a primeira
etapa de sua empreitada. Já não consegue se lembrar quanto tempo esperou pelo
maldito veiculo. O fato é que ele chegou, e sua próxima parada seria logo
alcançada.
Lá estava ele, na rodoviária de Brasília, a postos para o embarque de
sua viagem rumo à Bahia. E lá estava também, a sua espera o veículo que o
levaria àquele destino. "Viação Princesa do Agreste". O nome da
empresa era bem sugestivo. Na verdade o ônibus ia para Recife, mas na passagem
José desembarcaria em Feira de Santana, onde seu tio e padrinho estaria à
espera. Tinha sido tudo previamente combinado por seu pai. Afinal de contas, um
foragido político naqueles idos de 1966 era um problema muito sério. Entre
familiares seu codinome era "Maria de Lourdes", para evitar qualquer
vazamento ou grampo no telefone, qualquer censura nas cartas. Era tudo na base
de "Maria de Lourdes" vai bem... "Maria de Lourdes" já está
indo... "Maria de Lourdes" embarcou ontem... e por aí afora.
Bom. "Maria de Lourdes" estava ali, pronto para viajar.
Começou a olhar em redor e foi descobrindo os detalhes. Primeiro, o ônibus não
era dos mais novos. Também não estava caindo aos pedaços, vai. Mas a verdade é
que não era lá muito novinho. Depois tinha uma particularidade muito estranha
para uma viagem de mais de mil quilômetros: a poltrona não reclinava. Mas, tudo
bem, era acolchoada, pelo menos. A única vantagem mesmo é que estava muito
vazio. Quase metade dele estava desocupado quando finalmente zarpou do terminal
rodoviário de Brasília.
Mas foi aí que começou o drama. Ele parou em várias cidades-satélite. E
a cada parada dessas, entrava mais gente. A impressão que dava era que ia subir
a população inteira do planalto naquela joça. O negócio é que começou a ficar
apertado, muito apertado mesmo. Tinha trouxa de roupa colocada não se sabe como
nos bagageiros, tinha bebê, velhinha. Só não tinha mesmo galinha, papagaio e
jacaré. Aliás só faltava mesmo isso pra completar a fauna. Lá pelas tantas, uma
mulher grávida que havia entrado logo numa das primeiras paradas começou a se
queixar do lugar em que estava. Ela se instalara bem na frente do ônibus, em um
banco individual que ficava ao lado do motorista, e ainda por cima tinha o capô
interno do motor no meio. José, que estava na segunda fila atrás do motorista,
se propôs a trocar com ela.
A primeira fase da viagem correu bem. Estrada asfaltada, o ônibus
seguiu até Três Marias em direção a Belo Horizonte. O incomodava bastante a
idéia de como ia dormir naquele desconforto, no banco que não reclinava,
naquele aperto todo. Quando chegaram em Três Marias veio a resposta para a sua aflição. O
motorista anunciou que ali iriam fazer uma parada não somente para jantar, como
também para pernoitar. Desceram do ônibus. Era um ladeirão danado, alto, uma
verdadeira pirambeira. Ali jantaram uma comidinha mineira gostosa que só ela.
Coisa de pensão do interior.
Dia seguinte, nem o sol tinha aparecido ainda e aquele reboliço na
pensão. Era desse tipo de construção que quando se peida num quarto, nos outros
se escuta tudo. E aí, fila pra escovar os dentes, café da manhã, pagar o
pernoite, o que deixou José preocupado de novo, porque não tinha muito dinheiro
e não contava com uma viagem assim. Estava acostumado com outro tipo de viagem
em que os ônibus não paravam para pernoite. Mas, apesar dos seus medos, da
situação política do país, de tudo, José sempre achava que no final as coisas
dariam certo. Detalhe é que nessa confusão toda teve que comprar escova de
dentes, creme dental, etc, porque as suas coisas estavam todas na mala. A
roupa. Bem, a roupa era a roupa do corpo mesmo. Dormiu do jeito que estava e
assim acordou, meio amassado, mas pronto para a próxima.
Foi um dos primeiros a entrar no ônibus. Tudo ainda no lusco-fusco.
Todo mundo com cara de sono. Aos poucos foram chegando mais pessoas. Só o
motorista não chegava. Foi então que de repente o ônibus começou a andar. Um
ligeiro deslocamento, bem lento. Um primeiro gritinho de mulher lá atrás. Um
princípio de pânico? Talvez. A ladeira abaixo, ladeirão mesmo. José ficou
atônito, estatelado. Estava ainda meio dormindo, parecia mais um sonho, melhor
dizendo, um pesadelo. Não tinha a menor idéia do que fazer. Não sabia dirigir.
Olhou para o banco do motorista. Vazio. Olhou para a frente. A pirambeira. Será
que dá tempo de sair do carro, de evitar o pior? Pensou. Subitamente surgiu um
garoto, meio magro, uns quatorze anos mais ou menos. Ele deu um pulo, coisa
meio de super-herói, coisa meio de cinema, se jogou ágilmente no banco do
motorista e freiou. O veículo pára. Foi ovacionado. Olha, isso tudo aconteceu
em uma fração de segundos. Na verdade foi muito rápido. O pânico nem chegou a
se generalizar. Salvos por causa daquele menino, que José nunca soube quem era.
Um herói anônimo na sua vida e na vida de todas aquelas pessoas que ali
estavam.
Após a chegada do motorista, tudo finalmente voltava ao normal. Refeito
o susto, pé na estrada.
Em papo com os companheiros de viagem, José já sabia que o roteiro ia
por Corinto, Curvelo, Montes Claros, e aí, sertão adentro iríam alcançar a
Rio-Bahia num local chamado Divisa, isso depois de cortar o norte de Minas
inteiro. Ficou entusiasmado com a viagem. Fascinado com a possibilidade de
conhecer todos aqueles lugares.
Poucos quilômetros depois que deixaram Três Marias, fim do asfalto. Era
uma estrada larga, uma rodovia federal, mas de cascalho, a trepidação era
também um pouco maior. Mais poeira. Mas José até já gostava de estar naquele
lugar ali, ao lado do motor. Pelo menos podia ver a estrada, o visual todo sem
torcer o pescoço para o lado. O ônibus, todo fechado para evitar a entrada do
pó ficava um pouco abafado, o motor ao lado esquentava, principalmente os pés.
Tudo bem. Ele tinha nascido de novo depois daquele episódio da ladeira, e
estava feliz da vida.
Algumas horas depois passa um carro ao lado - um Aero Willys, ainda se
lembra -, e levanta uma pedra de cascalho em direção ao pára-brisas dianteiro
do lado do motorista. Cataplan! Aquele esporro e mais um susto. O segundo do
dia. Todos descem. Com um pedaço de pau foram removidos os estilhaços do vidro.
O motorista explicou que teria que chegar a Montes Claros daquele jeito, e, lá
procurar o pára-brisas para ser substituído. Todo mundo apeou. E seguiram em
frente.
Sorte é que não saiu ninguém ferido. Crianças de colo, senhoras mais
velhas, enfim, todos sãos e salvos. Apesar de não ser asfaltada, a estrada era
boa, principalmente em tempo seco. Daí, a velocidade também era razoável. Dava
pra passar um carro de cada lado. Isso quer dizer que os carros que vinham em
sentido contrário levantavam aquela nuvem de poeira. E aí alguém gritava:
"Lá vem pó!". E era um tal de se abaixar, tossir. Isso durante mais
de duas horas. Um verdadeiro deus-nos-acuda.
Finalmente chegaram a Montes Claros. Era a primeira vez que ele estava
por aquelas bandas. Cidade progressista, sô! Prédios modernos, um centro da
cidade movimentado, estação rodoviária. Só vendo. Enquanto toda a trupe parou
para almoçar num bar próximo à rodoviária o motorista saiu pra conseguir o tal
pára-brisas novo. Ficaram ali por um longo tempo, até que ele voltou. Uma cara
meio triste, um ar desolado. Não havia conseguido encontrar a peça. “É, modelo
mais antigo, sabe né, essas coisas...”, justificava-se. Mas ele tinha ouvido
falar que uma oficina que havia nos arredores tinha a tal peça. Lá foram eles.
Todo mundo de novo no ônibus e o Severino (José já não se lembra, mas acha que
este era o seu nome, ou, pelo menos tinha cara de) se dirigiu para a tal
oficina. Depois de muita volta, muita parada pra perguntar para que lado ir,
chegaram lá. Nada! Daí, o motorista resolveu meter pé na estrada assim mesmo.
Nessa altura, a tarde já ia avançando. Naquela de procurar pela peça
ficaram mais de três horas em Montes Claros. Tinham que correr um pouco pra
chegar a tempo na próxima parada. Daí em diante a estrada começava a mudar. O
que antes era uma estrada larga, foi virando um caminho mais estreito. O
cascalho deu lugar ao chão batido. Aos poucos começava a se notar um trilho de
mato no meio e os sulcos de terra marcando a posição das rodas. Aquela velha
picada mesmo, com pontes de madeira e os cambáu.
Começou a cair a noite. Bom. Aí mesmo é que o Severino virou uma peça.
Como começou a esfriar, o motorista enrolou a cabeça num suéter azul marinho,
colocou meias nas mãos, já que não tinha luvas, e, como estava de óculos
escuros continuou com o mesmo, apesar da escuridão. José não sabia se ria ou se
chorava quando olhava pra ele e via aqueles óculos escuros e o farol aceso na
frente iluminando a trilha estreita. "De repente surge uma vaca...",
pensava ele. O fato é que chegaram lá. Sem mais acidentes de percalço. Era uma
casinha de beira de estrada, simples. Quando desceu do ônibus, José batia na
roupa e levantava poeira. A primeira coisa que fêz foi tomar um banho. Claro
que depois de enfrentar uma longa fila. Jantou um delicioso frango à caipira.
Coisa da roça. Aí bateu na cama. Estava exausto.
No dia seguinte, novamente acordaram com as galinhas.
Começaram a atravessar uma das regiões mais bonitas que José já havia
visto em toda a sua vida. Chapadões enormes. Ele se lembrava do que havia lido
de Guimarães Rosa, de Mário Palmério. O ônibus serpenteava por encostas
perigosíssimas. Às vezes até se viam cruzes fincadas no solo das ribanceiras à
margem da estrada, provavelmente consequência de acidentes ali registrados.
Depois chegava no alto e retas enormes em planaltos a se perder de vista. Uma
paisagem inesquecível, pois dali mesmo, do alto daquelas estepes podiam-se ver
vez por outra as encostas das outras, abruptas em direção ao solo. Isso tudo
envolto em exuberante verde tropical.
Finalmente chegaram a Divisa, na Bahia. Pegavam enfim novamente o
asfalto, a “civilização”.
Dai em diante, foram muitas as paradas. A viagem atrasou demais, porque
cada vez que se encontrava a polícia rodoviária, o motorista era obrigado a
estacionar no acostamento e conversar com os tiras. Iam para um canto. José
achava que ele “molhava” a mão deles. Ele só sabe que um tempinho depois,
estavam de novo na estrada.
Chegaram finalmente a Feira de Santana com um atraso de mais de seis
horas em relação ao que havia sido marcado. Claro que seu tio não mais estava lá.
Era também a primeira vez que José chegava nesta cidade, apesar de ser baiano
da capital. Na época, Feira ainda não tinha uma estação rodoviária. Tinha, sim
uma rua que funcionava com esse propósito. Alí ficavam todas as companhias e
seus guichês de venda. Procurou uma companhia que fizesse a ligação com
Salvador. Não foi difícil. Estava preocupado com o pouco dinheiro que tinha,
mas deu para comprar a passagem e ainda sobrou algum. Viajou quase que em
seguida, mas se lembra que ainda deu pra dar uma rodada pelo centro, nas imediações
daquele local, antes do embarque.
Quando chegou em Salvador não tinha muita esperança de ter alguém lhe
esperando. E não tinha mesmo. Àquela altura, seu padrinho e todos os parentes
mais ligados estavam em polvorosa procurando por "Maria de Lourdes"
em outros cantos. Ele não sabia, mas enquanto se deslocava pelo sertão, o
governo fizera nas proximidades de Belo Horizonte uma verdadeira devassa em
todos os ônibus que daquela cidade se aproximavam devido à realização de um
Congresso da UNE. Eles, como José não sabiam do verdadeiro itinerário do seu
ônibus, e isso os deixou em pânico pois achavam que ele poderia ter passado por
lá. Na fantasia deles, José já estava preso, talvez até “desaparecido”. Pelo
simples fato de o ônibus não ter chegado no horário em Feira de Santana. Seu
padrinho, acompanhado de um primo ficara esperando o seu ônibus aproximar-se na
estrada, e isto não havia resultado em nada. Não tinham a menor idéia do seu paradeiro.
Pegou um táxi e se dirigiu à casa de um outro tio, por sinal um
tio-avô. Sabia que o combinado era ficar casa dele. Todos achavam que a do seu
padrinho poderia ser muito visada. José tinha o endereço e foi para lá.
Curiosamente, o táxi cobrou exatamente os últimos mil cruzeiros que ele ainda
tinha no bolso. Pagou, e não restou um puto.
E José, finalmente, sentia de novo, depois de um longo e tenebroso
inverno o aconchego de um lar.
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2 comentários:
Esta crônica foi publicada pela última vez aqui em "Novas Pensatas" no dia 19 de janeiro de 2012, e eu comentei às 10 horas e 15 minutos o comentário que transcrevo a seguir:
"Eu que sou assídua a este blog já faz algum tempo, nunca havia notado que havias postado esta muitíssimo interessante crônica do dia-a-dia.
Cheguei à conclusão que por isso mesmo é bom reeditar algumas matérias (que o blogueiro ache interessante) de vez em quando.
Taí, né, vivendo e aprendendo!"
Hoje, tenho a acrescentar que é uma crônica (ou seria um ensaio?) muito bem escrita e que reflete uma época da história do Brasil em que muita gente, como José e Maria de Lourdes sofreram as agruras impstas pelos militares no poder.
Por outro lado, tambem ressalta as esperanças, os sonhos e as experiências de jovens que depararam-se com a realidade de um mundo cruel que os forçaram a um amadurecimento precoce para assegurar sua própria existência.
A minha nota, como professora que sou é 10, ou quem sabe, 11 ou 12, se tais notas existissem!!!
E, claro, os meus mais sinceros parabéns!
Parabéns tchê esta foi uma bela crônica! Pode repetir a dose.
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