terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Tempo, espaço, tempo

O texto a seguir era um prefácio desta publicação (março/2008):
“Quando postei “Movimento” em 7 de janeiro deste ano, tentava reconstruir por lembranças um capítulo de ‘Tempo, espaço, tempo’, romance que comecei a escrever em 1967 e nunca terminei. Agora, remexendo em meus alfarrábios, encontrei os manuscritos originais. Segue abaixo um trecho de algumas das 151 páginas que cheguei a completar.”


“E naquele emaranhado de pessoas com os rostos enfaixados, eu continuava a correr sem saber para onde. Uma profunda angústia era tudo o que sentia. Não podia me comunicar com ninguém. Eram inatingíveis, indecifráveis. Eu podia cogitar que fosse alguém, mas nunca afirmar com quem iria falar. E em meio a pensamentos confusos eu tentava encontrar alguém que ainda pudesse ter um rosto, alguém que pudesse distinguir. Um ser humano, como eu!”

Para Antônio, Cléia não era somente a prostituta que satisfazia na cópula necessária à fúria de sua virilidade juvenil. Cléia, era sim, a mulher e o amor. A madrugada e a alcova. A carícia e o beijo apaixonado.
“Não consigo admitir esta idéia. Cléia foi para mim o despertar de um novo dia. Foi o amor total e completo, sem preconceitos, sem meios termos. Eu amei Cléia porque ela era uma flor no deserto da minha vida”.
– Será que um dia vamos viver juntos... e seremos felizes?
Cléia esboçou um sorriso. Seus belos olhos negros e brilhantes irradiavam alegria e esperança, mas também desconfiança e tristeza.
– Eu te quero, querido, eu... te quero... quero muito! Sussurou, com os lábios colados ao seu ouvido.
Ela deixava-se enlevar em seus braços, entregando-se por completo. Cléia era meiga. Seu corpo moreno e jovem... lindo, sua voz, suave. Seus longos cabelos desciam docemente, brilhando por ombros delicados, enlouquecendo Antônio, que a queria. Cabisbaixo, pensativo, Antônio não respondeu, ficando a fita-la, pensativo. Pensava o quanto a amava. Mas o quanto desejava que ela mudasse de vida.
Cléia, compreendendo o seu silêncio, deixou as lágrimas escorrerem de seus olhos. E chorou por um longo tempo nos braços de seu amado. Naquela noite não houve sexo. Apenas o tocar delicado em carícias, o respirar, o sentir um ao outro. O deitar a cabeça nos ombros... o consolar.

A verdade é que depois daquela noite, Antônio nunca mais viu Cléia. Por força das circunstâncias teve que sair às pressas. Mais uma vez. Para ele, fugir era uma rotina, um pesadelo sem fim, desde que tudo começara.

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“As ondas eram enormes. E eu no topo delas, podia ver o mundo abaixo de mim, os prédios, as pessoas pequenininhas, perdidas na imensidão, a meus pés, esperando o espatifar de todo aquele colossal acúmulo dágua.”

No canto da pequena sala, uma mesa tosca e uma vela, personalidades no ambiente do “aparelho”. Não eram apenas objetos, mas personagens que quase falavam e participavam.
Sentado na cadeira, estava Simão, o livro embaixo do braço e batendo ininterruptamente sobre a madeira da mesa. De vez em quando dava uma olhadela no relógio, franzia a testa e suspirava, demonstrando impaciência.
A luz da vela iluminava o ambiente de forma curiosa. Sua própria chama projetava sombras em movimento, mudando de intensidade de acordo com o vento que soprava da janela entreaberta. E nela, Josias olhava a sua própria, com os olhos meio cerrados. Ação essa que de tempos em tempos também era interrompida por uma consulta ao relógio.
– Eles não vêm mais! Exclamou levantando os braços e em seguida baixando-os para bater nas coxas enquanto levantava.
– É melhor que fique quieto... Interceptou Antônio em tom grave. – ...afinal, isso tudo pode ser uma cilada!
– Ele é um contato de confiança! Respondeu Josias indignado.
– Ninguém é de confiança... pôrra! – Simão estava sério e olhava em torno. – Ele tem razão. Disse apontado para Antônio. – Temos que prever tudo, companheiros. Não podemos estar sendo levados por fatores emocionais em momentos com este. Temos que manter a cabeça fria.
O silêncio pairou sobre a pequena sala por algum tempo, até que Antônio o interrompeu.
– Eles marcaram às oito, não foi?
Josias balançou a cabeça afirmativamente, voltando a vista para Antônio que estava sentado no chão fumando um cigarro.
– Já passam quinze minutos! Exclamou Simão levantando-se impaciente. – Não podemos tolerar um atraso desses! E as normas de segurança?
– Pode ter sido um acidente.
Josias estava nervoso. Sua expressão era de insegurança começando a beirar o medo.
– É... se fosse uma cilada... eles já teriam chegado e...
– E nós... Interrompeu Simão fazendo um gesto com o dedo na garganta, como que sendo cortada.
Fez-se um instante de silêncio profundo.
– Como foi a venda do jornal? Perguntou Josias tentando quebrar o gelo.
– Farei o relatório na reunião de amanhã, companheiro. Respondeu Antônio secamente.
Mais um momento de silêncio.
– Vamos esperar até as oito e trinta. Asseverou Simão.
Antônio bateu os punhos na mesa e respondeu:
– Decidido!
A sala testemunhava novamente. Por mais cinco minutos de espera. A eterna espera dos que não vêm, às vezes nunca se sabe por quê. As quedas, os companheiros que partem e não se sabe se voltam. Mas sempre com um sorriso nos lábios, uma missão a cumprir, um objetivo a seguir. As malas, os pacotes, os ônibus, as estradas sem fim.

“No fundo acaba sendo uma rotina. A gente vai... da primeira vez é difícil, da segunda, um pouco mais fácil. Daí em diante. Bom, daí em diante mais fácil ainda. Temos que estar convencidos da importância de cada viagem dessas. Um profissional se entrega a essa vida. Pela vida e pela morte. Não podemos estar deformados pelos vícios e pieguices da pequeno-burguesia, recalcada e sem perspectiva histórica.” Antônio recordava do ônibus rodando na estrada, na noite silenciosa. Pela fresta da janela via os faróis dos carros e caminhões que passavam em sentido contrário.

– Os cinco minutos já se passaram. Falou bruscamente Simão, interrompendo os seus pensamentos e apontando para o relógio.
– Vamos embora... – respondeu Antônio decidido ­– Amanhã nos encontramos no outro aparelho... quem sai primeiro?

A rua, grande e espaçosa. O burburinho de pessoas passando pra lá e pra cá. E no meio delas, Antônio, de mãos no bolso, cigarro na boca, também andando pra lá e pra cá.

Nota: Os manuscritos encontrados eram rascunhos do livro. Eu havia batido à máquina uma boa parte dele, mas, infelizmente não sei onde foi parar. O texto acima foi revisado, tendo sido alteradas algumas expressões e palavras.

8 comentários:

Ieda Schimidt disse...

Ótima postagem. Já havia gostado demais na primeira vez que publicastes. Agora então... guri!

André Setaro disse...

Lembro-me que, ainda em Salvador, falou-me desse projeto de escrever "Tempo, espaço, tempo", que, creio, começou a elaborá-lo quando já estabelecido novamente no Rio de Janeiro. Pelos trechos dados à luz nesta 'Novas Pensatas', reflete muito da angústia e incertezas pelas quais passava na época de sua escrita. Tinha, há pouco, deixado de ser a "Maria de Lourdes", que assumiu por circunstâncias alheias à sua vontade (como relata em outro post), "corrido" que estava da polícia política da ditadura. O interregno soteropolitano, sobre ser tranqüilo e calmo, passado com os familiares, não o tirou, no entanto, das apreensões do que poderia vir a seguir. No meu pensar, "Tempo, espaço, tempo" é uma obra que reflete o seu momento pessoal não desprovido, porém, de engenho na tentativa da fabulação em escrita escoreita e interessante.

Anônimo disse...

Assim como em outras postadas nota-se um estilo na narrativa.

Jonga Olivieri disse...

Falou, menina!

Jonga Olivieri disse...

Sim André, era um plano antigo. E mantive este título desde o seu embrião.
A postagem a que se refere foi publicada neste "Novas Pensatas" no dia 19 de novembro último.

Jonga Olivieri disse...

Obrigado pelo "estilo"...

Anônimo disse...

Sim tem mesmo estilo este seu romance inacabado. Pois acabe, um dia acabe.

Jonga Olivieri disse...

Quem sabe, um dia eu me animo e acabo.