Pensei na Guaíba esses dias. Daí, resolvi escrever e postar alguns dos momentos e aventuras na minha segunda jornada à fazenda, lá pelos idos dos anos sessenta.
A segunda vez que fui à Guaíba, não foi de “vapor” (1). Utilizei outro meio de transporte. Fomos de carro, com tio João, até Cachoeira. Melhor dizendo, arredores de Cachoeira, onde deixamos o automóvel estacionado numa outra fazenda de conhecidos. Ali já estavam nos esperando os cavalos e burros para a jornada.
Montamos e começamos a longa jornada. Essa maneira de acessar a fazenda já existia desde os tempos de tio Prisco. Ele, na verdade abriu uma estrada para levar um Ford “Modelo T” à Guaíba. Até a última vez em que lá estive, encontravam-se os restos deste veículo, enferrujando ao tempo, lá embaixo, ao pé da montanha, junto a uma antiga e desativada plantação de cacau.
Mas foi uma viagem segura, atravessando uma densa floresta, a estrada também carcomida pelo tempo e o abandono, tornando-se apenas uma picada no meio do mato. Era, no entanto maravilhoso contemplar as árvores gigantescas a subir pelas encostas num terreno acidentado, repleto de paredões e ribanceiras.
Passadas cerca de três horas, chegamos finalmente à casa grande, que desta vez era avistada do alto em plano inferior, contrariamente à primeira visão que eu tivera na primeira viagem, quando subi da vila à beira rio até a sede da fazenda. Quando apeamos dos cavalos, eu estava quebrado, pois o terreno instável me obrigava a segurar nos cavalos com uma força muito grande, certamente pela inexperiência no trato com aqueles animais. Mas, a chegada foi gostosa, primeiro por rever a fazenda, segundo por chegar, que era o mais importante àquela altura.
Estava lá aquele séqüito de empregados, a servir tia Maria e sua família. Chico “Parraxé” (2), velho capataz estava também à espera dos patrões, e, à frente da turba com largo sorriso, dava as boas vindas ao povo da cidade que ali, mais uma vez chegava. Paramos, como de costume, nos fundos da casa, ao lado da cozinha, em uma espécie de copa que dava para alguns dos quartos, e onde ficava uma terrina de barro enorme, com uma grande concha de metal, que era um reservatório de água potável do qual nos servíamos, principalmente à noite quando a sede apertava.
Deviam ser umas três da tarde, mas mesmo assim estava preparado um farto almoço no qual nos deleitamos. Aquele final de dia foi de preguiça e descanso. Nada fizemos e fomos dormir relativamente cedo, pois, creio eu, os demais também estavam exaustos. Dormi como bebê, numa noite tranqüila em que ninguém se lembrou de fantasmas, sacis e mulas-sem-cabeça...
Manhã seguinte, após aquele lauto café da manhã cheio de delícias bahianas como cuz-cuz, beijú e bolo de milho, pusemo-nos a descer para a aldeia. Ali, além de assistirmos o povo local a catar caranguejos no mangue, ainda saímos de canoa com puçás nas mãos para pescar siris. Uma aventura inesquecível em que, além de ficarmos no meio do rio, ainda tínhamos a sensação incrível de puxar o puçá cheio de siris. E observar aquela quantidade de elétricos crustáceos a se agitarem sem parar nas sacolas em que eram colocados vivos e em grande quantidade.
À tarde fomos passear a cavalo pelas redondezas, como quase sempre o fazíamos, com tia Maria à frente e a turma toda – eu, meus primos e primas – atrás em fila indiana pelas picadas estreitas e tortuosas que levavam a lugares onde havia pessoas conhecidas. Deles, naturalmente. Eram em geral passeios longos que terminavam quase ao pôr do sol, mas ainda com claridade suficiente para assegurar uma chegada sem grandes riscos à casa grande.
Ainda neste fim de dia, após o banho e ao cair da noite, eu, minhas primas Lula e Regina, meus primos Chico, Tuca e Bebeto, fomos visitar uma senhora (da qual me esqueço o nome) que vivia em um casebre de taipa, não muito distante da sede da fazenda, e cuja especialidade era fazer uma “lavagem espiritual” com folhas de bananeira, charuto na boca e palavras balbuciadas de pouco ou nenhum entendimento, e que, segundo eles, tirava “mau olhado” e outras coisas afins. Tive que participar do ritual, já que ali estava. Um espetáculo curioso de misticismo primitivo; que culminou com um “agrado” dado por cada um de nós à ‘preta véia’.
Voltamos, e após o jantar, à base de crustáceos – muitos dos quais eu havia ajudado a pescar – o tradicional jogo de Palavras-Cruzadas e o desafio de enfrentar tio João e seu domínio do léxico português. E após tudo isso, o desligar das luzes da fazenda, o lampião a querosene e... as tradicionais e tenebrosas historinhas para não deixar ninguém dormir em paz.
(1) Ver o relato de minha primeira viagem à Guaíba, postado neste blogue em 12 de outubro de 2008.
(2) O “velho”Chico “Parraxé”, o prolífico administrador da Guaíba que teve tantos filhos quanto cabem os dedos das duas mãos. Uma de suas filhas, Helena ou “mãe Nena”, foi empregada de meus pais no Rio. Outro, conhecido como “Bacurau”, era o administrador na última vez que fui à fazenda, em 1982, com meu primo Tuca. “Bacurau”, como grande parte dos filhos de Chico, veio a morrer da doença de Chagas.
A segunda vez que fui à Guaíba, não foi de “vapor” (1). Utilizei outro meio de transporte. Fomos de carro, com tio João, até Cachoeira. Melhor dizendo, arredores de Cachoeira, onde deixamos o automóvel estacionado numa outra fazenda de conhecidos. Ali já estavam nos esperando os cavalos e burros para a jornada.
Montamos e começamos a longa jornada. Essa maneira de acessar a fazenda já existia desde os tempos de tio Prisco. Ele, na verdade abriu uma estrada para levar um Ford “Modelo T” à Guaíba. Até a última vez em que lá estive, encontravam-se os restos deste veículo, enferrujando ao tempo, lá embaixo, ao pé da montanha, junto a uma antiga e desativada plantação de cacau.
Mas foi uma viagem segura, atravessando uma densa floresta, a estrada também carcomida pelo tempo e o abandono, tornando-se apenas uma picada no meio do mato. Era, no entanto maravilhoso contemplar as árvores gigantescas a subir pelas encostas num terreno acidentado, repleto de paredões e ribanceiras.
Passadas cerca de três horas, chegamos finalmente à casa grande, que desta vez era avistada do alto em plano inferior, contrariamente à primeira visão que eu tivera na primeira viagem, quando subi da vila à beira rio até a sede da fazenda. Quando apeamos dos cavalos, eu estava quebrado, pois o terreno instável me obrigava a segurar nos cavalos com uma força muito grande, certamente pela inexperiência no trato com aqueles animais. Mas, a chegada foi gostosa, primeiro por rever a fazenda, segundo por chegar, que era o mais importante àquela altura.
Estava lá aquele séqüito de empregados, a servir tia Maria e sua família. Chico “Parraxé” (2), velho capataz estava também à espera dos patrões, e, à frente da turba com largo sorriso, dava as boas vindas ao povo da cidade que ali, mais uma vez chegava. Paramos, como de costume, nos fundos da casa, ao lado da cozinha, em uma espécie de copa que dava para alguns dos quartos, e onde ficava uma terrina de barro enorme, com uma grande concha de metal, que era um reservatório de água potável do qual nos servíamos, principalmente à noite quando a sede apertava.
Deviam ser umas três da tarde, mas mesmo assim estava preparado um farto almoço no qual nos deleitamos. Aquele final de dia foi de preguiça e descanso. Nada fizemos e fomos dormir relativamente cedo, pois, creio eu, os demais também estavam exaustos. Dormi como bebê, numa noite tranqüila em que ninguém se lembrou de fantasmas, sacis e mulas-sem-cabeça...
Manhã seguinte, após aquele lauto café da manhã cheio de delícias bahianas como cuz-cuz, beijú e bolo de milho, pusemo-nos a descer para a aldeia. Ali, além de assistirmos o povo local a catar caranguejos no mangue, ainda saímos de canoa com puçás nas mãos para pescar siris. Uma aventura inesquecível em que, além de ficarmos no meio do rio, ainda tínhamos a sensação incrível de puxar o puçá cheio de siris. E observar aquela quantidade de elétricos crustáceos a se agitarem sem parar nas sacolas em que eram colocados vivos e em grande quantidade.
À tarde fomos passear a cavalo pelas redondezas, como quase sempre o fazíamos, com tia Maria à frente e a turma toda – eu, meus primos e primas – atrás em fila indiana pelas picadas estreitas e tortuosas que levavam a lugares onde havia pessoas conhecidas. Deles, naturalmente. Eram em geral passeios longos que terminavam quase ao pôr do sol, mas ainda com claridade suficiente para assegurar uma chegada sem grandes riscos à casa grande.
Ainda neste fim de dia, após o banho e ao cair da noite, eu, minhas primas Lula e Regina, meus primos Chico, Tuca e Bebeto, fomos visitar uma senhora (da qual me esqueço o nome) que vivia em um casebre de taipa, não muito distante da sede da fazenda, e cuja especialidade era fazer uma “lavagem espiritual” com folhas de bananeira, charuto na boca e palavras balbuciadas de pouco ou nenhum entendimento, e que, segundo eles, tirava “mau olhado” e outras coisas afins. Tive que participar do ritual, já que ali estava. Um espetáculo curioso de misticismo primitivo; que culminou com um “agrado” dado por cada um de nós à ‘preta véia’.
Voltamos, e após o jantar, à base de crustáceos – muitos dos quais eu havia ajudado a pescar – o tradicional jogo de Palavras-Cruzadas e o desafio de enfrentar tio João e seu domínio do léxico português. E após tudo isso, o desligar das luzes da fazenda, o lampião a querosene e... as tradicionais e tenebrosas historinhas para não deixar ninguém dormir em paz.
(1) Ver o relato de minha primeira viagem à Guaíba, postado neste blogue em 12 de outubro de 2008.
(2) O “velho”Chico “Parraxé”, o prolífico administrador da Guaíba que teve tantos filhos quanto cabem os dedos das duas mãos. Uma de suas filhas, Helena ou “mãe Nena”, foi empregada de meus pais no Rio. Outro, conhecido como “Bacurau”, era o administrador na última vez que fui à fazenda, em 1982, com meu primo Tuca. “Bacurau”, como grande parte dos filhos de Chico, veio a morrer da doença de Chagas.
8 comentários:
Já havia gostado muito da tua postagem anterior sobre Guaíba (que não é o rio), e agora confirmo isto.
"Chico Parraxé", que muito conheci, era, de fato, mas não de direito, o "governador" da Guaíba. Segundo a lenda (e, segundo John Ford, quando a lenda se sobrepõe ao fato deve se publicar a lenda), "meia" Guaíba era filha dele. Maneiroso, frente aos donos da fazenda, os Priscos, era de natureza servil e concordava com tudo. Mas com seus companheiros, tinha uma maneira de agir com mão de ferro, uma mão, todavia, que se fazia macia quando a passava nas pernas da mulherada, que se deixava entregar aos seus suspirantes apelos amorosos. César Prisco uma vez me disse, sério, deitado na rede, e ficou, sério, olhando para o chão: "Chico deve ter mais de 100 filhos!!" Um exemplo de reprodutor para a viadagem atual que proclama a frescura como modo de vida e de ação.
A Guaíba não é um rio, mas tem rio a passar por ela.
Não sabia que chegavam a tanta gente a prole de 'Chico Parraxé'!
Um verdadeiro garanhão reprodutor, hehehe!
Agora, sem dúvida alguma ele era o 'governador' daquelas terras.
Desde a primeira publicação sobre a Guaíba vejo o quanto ela me lembra da fazenda da minha família aqui.
Adorei. Se tiver mais publique.
Pode deixar que uma hora dessas eu posto mais alguma da Guaíba...
Nossa, essas memórias de donos de fazenda e sua prole, parece os filmes nacionais que assisti nos anos 60, da grande família. Lulu a prima citada, deve ter uma versão diferente, a versão das mulheres sempre são mais decisivas ( risos).
As histórias da Guaíba são muito interessantes e refletem uma época em que o campo era semi-feudal e bastante atrasado.
Quanto às versões, pergunte a Lula, pois creio, você a conhece.
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