domingo, 2 de abril de 2017

Pensatas de Domingo




O excelente livro Why Marx Was Right do escritor e crítico literário inglês Terry Eagleton foi publicado na Espanha sob o título Por qué Marx tenía razón.   O livro também foi publicado no Brasil pela Editora Nova Fronteira com o seguinte título: Marx estava certo (1)
O professor Salvador Lopez-Arnal escreveu uma lúcida resenha “Contra la caricatura de una obra y un pensador esenciales” para o livro de Eagleton que foi publicada por rebelion.org. Dada a sua importância,  o professor Jorge Vital de Brito Moreira decidiu fazer uma tradução livre ao português para os leitores de Novas Pensatas.


Contra a caricatura de um trabalho e um pensador essenciais.

Salvador López-Arnal

"Já houve alguma vez um pensador mais caricaturado” que Karl Marx? Com esta pergunta, Terry Eagleton, o professor de Teoria Cultural da Universidade de Manchester, termina seu livro Marx estava certo. A resposta para essa pergunta provavelmente seria: Não, provavelmente não. As razões para essa interessada caricatura da obra de Karl Marx também são conhecidas. Eagleton  nos fala delas.

Esta última crise, revela Eagleton, “significou no mínimo que a palavra ‘capitalismo’, geralmente camuflada sob algum pseudônimo evasivo como ‘Idade moderna’,  ‘sociedade industrial’ ou  ‘ocidente’,   tornou-se mais uma vez moeda corrente e quando as pessoas começam a falar do capitalismo, podemos ter certeza de que o sistema capitalista se encontra em sérios apuros”.

Esta não é a única nota perspicaz, brilhantemente formulada pelo autor do livro Marx estava certo. Um prefácio, dez capítulos, uma conclusão e as notas compõem o que é provavelmente o último livro, ou um dos últimos ensaios do grande e incansável Terry Eagleton. Estas são as razões para este ensaio: “Este livro teve origem em uma única e extraordinária ideia: e se todas as objeções mais conhecidas à obra de Marx forem equivocadas? Ou, no mínimo, se não equivocadas de todo, o forem em sua maior parte?”

Algumas das objeções, na maior parte conhecidas, que Eagleton discute e refuta (ele não se esconde diante das mais incomodas, mas tão pouco se prontifica a fazer um catálogo tipo Leporello-Don Giovanni) são as seguintes: No primeiro capítulo, Eagleton refuta que “o marxismo tenha acabado”; que o marxismo talvez pudesse ter alguma relevância num mundo de fábricas e de revoltas por fome de mineiros do carvão e de limpadores de chaminés, num mundo de pobreza generalizada e de concentração das massas trabalhadoras; que o marxismo não faz sentido nas sociedades ocidentais pós-industriais de hoje, caracterizada por diferenças de classes sociais cada vez menores e por um aumento crescente da mobilidade social. (Que poesia, Dona Sofia!).
No segundo capítulo, Eagleton refuta a objeção de que "o marxismo pode ser bom em teoria, mas sempre que foi colocado em prática, resultou em terror, em tirania, no assassinato massivo em grande escala”. No terceiro,  Eagleton  refuta a objeção de que o marxismo é apenas mais uma forma de determinismo que transforma homens e mulheres em seres autômatos, dominados pela ‘História econômica’ do mundo. No quarto, Eagleton questiona a objeção de que o marxismo seja um sonho utópico; que “acredita na possibilidade de uma sociedade perfeita, sem dificuldades, sem sofrimento, sem violência e sem conflito”. No quinto, Eagleton refuta a objeção de que “o marxismo reduz tudo à economia e nega todas as outras dimensões humanas, como a psicologia, a biologia, a espiritualidade, a arte, laços sociais não econômicos, enfim, toda e qualquer forma humana que não seja condicionada pelos laços e interesses econômicos”. No sexto capitulo, Eagleton refuta a objeção de que Marx foi um materialista chato; que “acreditava que não havia nada mais do que a matéria”; que não estava interessado em absoluto nos aspectos espirituais da humanidade. No sétimo capitulo, refuta a objeção que fazem ao conceito de classe social; de que “nada é mais obsoleto no marxismo que a sua tediosa obsessão com a classe social.” No oitavo, Eagleton questiona a argumentação de que os marxistas defendem sempre e em todas as circunstâncias a ação política violenta; que “eles rejeitam o caminho sensato da reforma moderada e gradual e optam sempre pelo caos sangrento da revolução”. No nono capitulo, que o marxismo acredita no Estado todo-poderoso; e, finalmente, no décimo, que “os movimentos radicais mais interessantes das últimas quatro décadas surgiram todos, sem exceção, ‘fora do âmbito do marxismo”.

Não se trata aqui, nesta resenha, de dar conta das explicações críticas de Eagleton a essas objeções, mas de ressaltar, a título de exemplo, alguns dos seus comentários. Sobre a não espiritualidade do marxismo, ele diz: "O espiritual tem certamente a ver com o extramundano (outro mundo). Mas não com o extramundano tal como é concebida pelos religiosos. Trata-se, mais bem, de um outro mundo que os socialistas aspiram a construir no futuro no lugar deste mundo que já tem a data de validade vencida. É evidente que quem não seja extramundano neste sentido ainda não parou para olhar de perto, detidamente, o mundo que existe ao seu redor". Sobre a fixação marxista ao conceito de classes sociais, diz Eagleton: "[...] somente indivíduos que reduzem a realidade da classe social a uma questão de donos de fábricas vestidos com um fraque e a trabalhadores vestidos em seus macacões de trabalho, somente esses indivíduos são capazes de aderir a uma ideia tão simplista. Convencidos e convencidas de que classe social está tão morta como a guerra fria, esses indivíduos recorrem não à classe social, mas à  identidade, à etnia e á sexualidade. No entanto, no mundo de hoje, esses fatores são tão interligados com a classe social como têm sido desde sempre"

Nas conclusões do seu estudo, algumas discutíveis ou que necessitariam de mais detalhes , Eagleton lembra de outras teses marxistas que valem a pena lembrar. Por exemplo, Marx tinha uma crença apaixonada no indivíduo e uma grande desconfiança em dogmas abstratos: ele não estava interessado no conceito de sociedade perfeita, Ele desejava  promover a diversidade, não a uniformidade. Entre os seus ensinamentos, Marx não aceitava que homens e mulheres tivessem que ser brinquedos impotentes nas mãos de uma História com letras maiúsculas; Marx concebeu o socialismo como um aprofundamento da democracia e não como um inimigo dela; seu modelo de vida plena estava baseado na ideia da autoexpressão artística e que nenhuma produção material se transformara em fetiche. Seu ideal era o lazer e o tempo livre no lugar do trabalho; se Marx prestou tanta atenção à economia era precisamente com o objetivo de diminuir o poder do lado econômico sobre toda a humanidade; seus pontos de vista sobre a natureza e o meio ambiente foram, em sua maior parte, surpreendentemente avançados para seu tempo. Além disso, para Eagleton, sem  exagerar nas tintas e sem cair na cegueira da paixão, nunca existiu "um  defensor mais ferrenho da emancipação das mulheres, da paz mundial, da luta contra o fascismo ou da liberdade anticolonial que o movimento político iluminado pela obra de Karl Marx". Não é que nós não tenhamos de rever o que necessita de revisão, ainda que seja tudo o que temos de fazer, o que não está nada mal.
Eagleton (que não cultiva jardins da idiotice ou insensatez) não pretende sugerir nem defender que Marx nunca tenha dado um passo em falso.  Não sou, diz Eagleton, "esse tipo de esquerdista que, por um lado, proclama devotamente
que tudo está aberto à crítica e depois, quando convidado a produzir três grandes críticas a Marx se recolhe a um silêncio truculento, cheio de mal humor”.

Como Eagleton mesmo admite, ele não se propôs expor a perfeição, a veracidade, nem a correção eterna (für ewig) de todas as ideias de Marx, mas apenas – e isso não é pouco – a sua plausibilidade. Na minha opinião, Eagleton conseguiu o que pretendia, ainda que ele não seja um leitor devoto de Marx (se pode notar pela bibliografia consultada), nem um praticamente devoto da filologia marxista, e de ser capaz de fazer reflexões, com ironia incluída, com alta tensão politico-epistêmica. Esta reflexão de Eagleton, por exemplo: “Em seus comentários sobre Wagner  (Notes on Wagner), Marx fala em termos impressionantemente freudianos sobre a primeira identificação pelos seres humanos de objetos no mundo em termos de dor e prazer, e logo aprendem a distinguir quais deles satisfazem necessidades.  O conhecimento, como acontece com Nietzsche, começa como uma forma de domínio sobre tais objetos. Assim, o conhecimento está associado, tanto por Marx como por Nietzsche, com o poder." Muita coincidência entre Freud, Marx e Nietzsche mostra este fragmento.

PS: Eagleton nos dá um bom argumento para fertilizar (sensatamente) a tradição marxista: Assim como “nenhum freudiano imagina que Freud jamais tenha cometido um erro crasso  (a generosidade de Eagleton com os freudianos é aqui evidente), assim como nenhum fã de Alfred Hitchcock defenderia toda e qualquer tomada de cena do mestre”, nenhum marxista, sem deixar de ser marxista (ou seja, reconhecendo-se na tradição), teria que defender que o revolucionário de Tréveris nunca dormiu em nenhuma página de O Capital ou em textos relacionados e não relacionados com o mesmo.

Nem a ciência, nem a filosofia, nem revolução social, nem as práticas transformadoras se alimenta com esse tipo de tempero. Eagleton recorda as palavras que Ludwig von Mises, um antissocialista, dedicou ao marxismo:
“(Se trata) do movimento de reforma mais poderoso que a história já conheceu, a primeira tendência ideológica não limitada a uma parcela da humanidade, mas apoiada por gente de todas as raças, nações, religiões e civilizações”.

 Se jogássemos no mar  alguns cabelos junto  aos termos "reforma" e "tendência ideológica", não poderíamos admitir que às vezes  o pensamento reacionário está informado, é poderoso e pode ver o que se necessita ver, acertando no alvo? (2)

Notas:
1) Terry Eagleton. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2012.

2) Esta pergunta  do professor Salvador Lopez-Arnal a respeito  das palavras que o pensador antissocialista Ludwig von Mises dedicou ao marxismo,  também poderia ser dirigidas ao prefácio da edição brasileira (“Contra a caricatura: do estilingue à bomba atômica”) do filosofo conservador Luiz Felipe Pondé a este  livro de Terry Eagleton.

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