terça-feira, 30 de setembro de 2008

Uma “mui leal e invicta cidade”

Depois do Papo de cachimbeiro, continuo com a reedição de antigos artigos. Este, postado anteriormente no primeiro Pensatas em fevereiro de 2007, foi também publicado no Caderno de Turismo do Jornal do Brasil de 28 de maio de 1997, na coluna “Eu conheço um lugar”.

A cidade do Porto é conhecida como “a mui leal, heróica e invicta”. Quando se percorre o que resta das muralhas Fernandinas, respira-se o ar desta invencibilidade e lealdade. Compreende-se porque os mouros não conseguiram conquistar aquela cidade heróica. O portuense também é conhecido como “tripeiro” exatamente porque, durante um cerco prolongado, seus habitantes viram surgir a necessidade de consumir tripas, em função da escassez de outros gêneros. Assim foi inventado o famoso prato que leva o nome da cidade: “Tripas à moda do Porto”, que é servido em quase todos os restaurantes. pelo menos uma vez por semana. Mas que também pode ser encontrado diariamente no Tripeiro, que como diz o nome, tem neste quitute a sua especialidade, ou mesmo no Escondidinho, outra tradicional casa da cidade.
Foi o Porto também que viu nascer, nada mais, nada menos que o Infante D. Henrique, e que tem como um dos seus principais encantos a ponte D. Luiz, toda em estrutura de aço e projetada por um discípulo de Eiffel. O próprio mestre, por sinal, é o autor de outra ponte muito semelhante: a D. Maria, que era utilizada exclusivamente por trens. Ou melhor, comboios, tal como eles dizem por lá. Esta foi substituída recentemente por uma mais moderna, e que atende melhor ao tráfego atual.
Mas, se for para falar de maravilhas do Porto, dá para encher um livro. Morei lá por três anos, e realmente posso dizer que conheço a cidade com uma certa intimidade. O Porto é uma cidade-mulher com suas brumas, seus mistérios, seu sorriso. Não é fácil descobri-la, embora seja muito comum apaixonar-se por ela ao primeiro olhar.
É muito bom perder-se pelas ruas tortuosas da “Baixa”, principalmente as próximas à Ribeira e seu antigo cais. Dali, enquanto se verte um delicioso “fino” – que vem a ser chopp – acompanhado de tremoços e azeitonas, você pode apreciar os barcos Rabelos, antigas embarcações a vela que eram usadas como transporte de tonéis para fabricação do famoso vinho local. Hoje os barcos estão desativados e servindo somente como pano de fundo. Em frente, do outro lado do Douro, está Vila Nova de Gaia, que, por incrível que pareça, é onde se fabrica o vinho do Porto. Agora, melhor ainda é estar mesmo lá em Gaia, tendo como paisagem frontal a própria Ribeira e a cidade do Porto, com a torre dos Clérigos, a Igreja da Sé, o magestoso prédio da Bolsa de Valores, a cidade baixa e a cidade alta, num conjunto inesquecível. Contemplando o pôr-do-sol neste lugar, descobre-se o porquê do nome daquele rio. Suas águas douradas refletem a poesia do entardecer entre o bucólico e o romântico, que só a luz da Península proporciona.
Mas a Ribeira é ponto de encontro da cidade para a apreciação da boa comida lusitana, desde um bacalhau ao famoso arroz de mariscos, sem deixar de passar pelos cabritos e, eventualmente, algum tipo de caça. O Chez Lapin é um bom exemplo de um restaurante naquele sítio. Outro é o D. Tonho, que fica bem no Cais da Ribeira mesmo. Tem ainda o Alzira, que serve uma lula recheada difícil de se esquecer, e que fica numa rua muito engraçada que é a Viela do Buraco. Número três, por sinal. As ruazinhas da Ribeira são um charme com aquele amontoado de lençóis e roupas pendurados em suas varandas, no melhor estilo “napolitano”. Alí também existem algumas boas casas noturnas, que os portugueses costumam chamar de pubs, embora sejam completamente diferentes de qualquer pub inglês. Assisti num desses, certa ocasião, um conjunto caboverdiano fantástico, tocando algo muito semelhante ao nosso samba. Também na Ribeira pode-se optar por um belo cruzeiro de barco pelo Douro. Um passeio imperdível.
Saindo da Ribeira e seguindo o Douro em direção ao mar, percorre-se um caminho lindo que desemboca na foz do rio. Ali assisti a uma pororoca, de pequenas proporções, claro, bem embaixo da ponte da Arrábida (em cima corre a A-2, a auto-estrada que liga o Porto a Lisboa), e junto a uma colônia de pescadores, que se mistura com antigos pequenos estaleiros para barcos de pesca.
Mas a Foz é o point. O must. Uma praia que nunca me convidou ao mergulho, tal a brabeza de seu mar, mas que, sem dúvida, é uma das mais urbanizadas que conheci, com decks e barzinhos espalhados à beira-mar. Sem contar a Foz Velha, com sua igrejinha barroca, e as ruelas enladeiradas onde se come uma das melhores pizzas que eu já provei no Al Forno, um restaurante deliciosamente ambientado à luz de velas, e cujo dono, português, tinha morado algum tempo no Brasil.
Seguindo em frente – à beira-mar – pela bela Avenida Brasil, pois esse é o nome da principal via da Foz, depara-se com o castelo do Queijo, que é assim chamado por causa do seu formato. À esquerda o caminho para outros municípios – que lá são chamados de freguesias – tais como Matosinhos e Lessa da Palmeira, que têm praias e locais também muito aprazíveis. Matosinhos é o lugar ideal para se comer a santola ou sapateira, aquele caranguejão de proporções gigantescas que abunda em Portugal e na Irlanda. Ou uma cataplana de frutos do mar (uma caldeirada fantástica) daquelas de se bufar de prazer no final. À direita a Avenida Boavista, uma longa reta de vários quilômetros que desemboca na rotunda do mesmo nome, sem antes deixar de passar pelo Meridien, o Sheraton, o Shopping Dallas e vários outros centros comerciais elegantes da cidade, como o Foco, que é um mini bairro completinho, até porque tem um dos melhores cinemas da cidade (os cinemas do Porto são excelentes), o seu mais famoso restaurante de cozinha gaulesa, e até, porque não, o próprio consulado francês. Além de luxuosas butiques e excelentes prédios residenciais.
Desde a Foz, estamos falando de uma cidade moderna, update com o que há de melhor na Europa e no mundo. Mas é nos arredores da Rotunda da Boavista que nós vamos nos deparar com esse Portugal atual, repleto de construções modernas, como o Boavista Trade Center ou os Edifícios Motta Galiza. E também o velho e bom Shopping Brasília, o primeiro da cidade e que mais parece uma grande e confusa galeria, mas que durante muito tempo foi o único shopping center da cidade. Lá eu ia toda semana comprar o Jornal do Brasil de domingo, e matar, assim, um pouco a saudade da terra.
Não muito longe dali está a Fundação Serralves, o Museu de Arte Moderna da cidade. Fica em terreno amplo, cercado de jardins e aléias que mais lembram o nosso Jardim Botânico. Nele existem, inclusive, espaços como a pérgula com o Café. onde um anfiteatro dá lugar a recitais de música ocasionais. Assisti ali a um festival de jazz incrível. O prédio do museu em si, é uma obra prima em estilo. Suas amplas salas e seus dois andares, antes residência de um milionário portuense, abrigam um acervo riquíssimo em pinturas e esculturas não somente portuguesas, como européias. E, na sua intensa programação, exposições de importantes pintores clássicos ou de vanguarda, como a que ví do catalão Antoni Tapiès.
E não se poderia falar do Porto sem lembrar a tradicional festa de São João. Uma noite inesquecível, leve, divertida, em que a principal diversão é bater nos outros com a flor do alho-poró, e quando as ruas ficam repletas de crianças dos oito aos oitenta, comendo sardinha assada e bebericando uma boa quantidade de cerveja e vinho. Não perdi nenhuma das três que tive a oportunidade de passar lá. Numa dessas festas me recordo que o Mário Soares – então ainda Presidente da República – estava lá, de alho-poró na mão, cercado de sua comitiva e divertindo-se à rasca (para usar uma expressão bem lusitana).
Para finalizar, vamos ao Cunha (uma espécie de Confeitaria Colombo de lá). Quase um quarteirão inteiro onde se podem encontrar os melhores jamóns espanhóis ou os mais variados acepipes portugueses, além de um excelente restaurante (que aos sábados serve uma feijoada muito boa e bem brasileira), além do indiscutível e/ou inigualável queijo da Serra.
Assim é o Porto. Cidade que originou o nome do próprio país, Porto Cale. Cidade moderna e tradicional, mesclada no tempo e no espaço e que possui coisas tão antagônicas quanto a velha ponte dos tempos em que era colônia do vasto império romano, ou as modernas construções e auto-estradas que fazem de Portugal hoje uma das estrelas a brilhar na bandeira da União Européia.

10 comentários:

Anônimo disse...

Acho muito interessante tuas crônicas sobre Portugal.
Por mim, podes republicar todas elas.

Jonga Olivieri disse...

E pretendo recolocá-los no Novas Pensatas (segundo você Pensatas II).
Tenho um plano de ir reeditando uma postagem por semana, mas de forma variada.
Assim a gente chega lá.

Anônimo disse...

Ora pois pois. Portugal meu avôzinho!

Jonga Olivieri disse...

Gozação é JR?
Vai-te à rasca, seu paneleiro...

André Setaro disse...

Depois de ler sua instigante descrição da cidade tive vontade de tomar uma garrafa de vinho do Porto. Ha, ha,

Jonga Olivieri disse...

E tem também os vinhos da Região (demarcada) do Douro, que acho até melhores, não desmerecendo o do excelente similar do Porto.

Anônimo disse...

Com o frio que está fazendo, vale qualquer vinhozinho pra esquentar. Gosto muito deste seu artigo sobre o Porto. valeu a pena reler. E foi uma pausa mesmo. Porque essa crise tá ficando terrível.
Otávio

Jonga Olivieri disse...

E vai ficar pior, Tavinho.
Aproveito os bons momentos de um bom vinho para esquecer um pouco, porque as medidas que estão sendo tomadas são meramente superficiais.

Anônimo disse...

Embora tenha conhecido o seu blog bem depois da publicação desta matéria, por ser curiosa havia lido várias mais antigas.
Entre elas ela.

Jonga Olivieri disse...

Também tenho um carinho especial por este texto.
Aliás, tenho um carinho especial por Portugal... que não considero "meu avozinho", como diz o JR, mas considero um lugar muito especial.