Esta semana falei do Cinerama, do Lamas, das sessões do Paissandu. Putz, lembrei de tanta coisa...
Havia um sujeito cujo apelido era “Filósofo”. Meio baixinho, o cabra circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares freqüentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia um discurso “inflamado”. No final, todos aplaudiam.
Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da cidade. Quando falei do Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu, lembrei-me das figuras que iam sempre, mas sempre mesmo com “Ulisses” ou “O Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de James Joyce era quase que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava demais corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O resultado é que virou moda mesmo. Poucos entendiam, mas todos discutiam. A pergunta “... você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles finais dos anos 60.
Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx, e era íntimo de suas idéias.
Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.
Mas, além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e do cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.
Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o mais sofisticado fumo Dunhill, sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.
No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras (hoje com 134 anos de existência), sentaram os traseiros, em outros tempos, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha ou Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura deste país.
Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.
Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma maçã, saia trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava em casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e do mundo. Muita briga com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas noturnas têm.
Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e filosofadas. Uma época rica em minha memória.
(1) Esquerda “festiva” era aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas.
(2) O Lamas mudou-se dali para a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido. Até hoje serve o seu filé, que continua famoso, mas eu acho que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?
Havia um sujeito cujo apelido era “Filósofo”. Meio baixinho, o cabra circulava pelas noites cariocas, sempre nos bares freqüentados pela esquerda, a “festiva” (1), em particular. O dito personagem, lá pras tantas, já de pileque subia numa cadeira e fazia um discurso “inflamado”. No final, todos aplaudiam.
Mas, como o “Filósofo” havia todo um folclore que pairava pelas madrugadas da cidade. Quando falei do Cinerama, o barzinho que ficava ao lado do cinema Paissandu, lembrei-me das figuras que iam sempre, mas sempre mesmo com “Ulisses” ou “O Capital” debaixo do braço. “Ulisses” era a grande coqueluche da época. Em tradução da Civilização Brasileira, a leitura do livro de James Joyce era quase que obrigatória. Acontece que a simbologia do autor em sua narrativa, embaralhava demais corações e mentes nem sempre preparadas para compreendê-la. O resultado é que virou moda mesmo. Poucos entendiam, mas todos discutiam. A pergunta “... você já leu Ulisses?” era das mais comuns naqueles finais dos anos 60.
Quem carregava “O Capital” sob o suvaco, naturalmente queria dizer e mostrar ao público circunvizinho que entendia Marx, e era íntimo de suas idéias.
Tudo isto contado assim, parece simples. Mas, olha, a coisa era pra lá de complicada. Porque no auge das bebedeiras, chegavam a dar medo algumas reações e discursos numa época de repressão e violência com os militares no poder. Certamente que eles (os milicos) encaravam tudo aquilo como uma espécie de “gueto”, e, certamente vigiavam, somente vindo a tomar medidas repressoras mais violentas à medida que sentissem a coisa extrapolar a área circunscrita, e, logicamente demarcada da “porralouquice” etílica, de uma esquerda que falava para a própria esquerda, num círculo vicioso, quase um moto contínuo.
Mas, além do Cinerama, ia-se muito ao Lamas. Não muito longe dali, uns três longos quarteirões e se chegava lá, em pleno Largo do Machado, entre a garagem dos bondes da Light e do cinema São Luis. As caras eram as mesmas, mas o lugar era muito mais charmoso. Existiram poucos bares como o Lamas. Pensando bem, muito mais do que isso, um restaurante. E o melhor filé (2) da cidade.
Na frente, a tabacaria e a banca de frutas. Frutas de todos os tipos e origens, algo precioso e colorido. Na tabacaria, desde o Continental (sem filtro) até o mais sofisticado fumo Dunhill, sem contar os charutos cubanos. Mas, detalhe, ali você também comprava um Pimentel ou uma cigarrilha Talvis da vida.
No meio o restaurante, café e bar. Não era enorme, mas ao adentrar sentia-se o peso da história. Naquelas cadeiras (hoje com 134 anos de existência), sentaram os traseiros, em outros tempos, Getúlio Vargas, Monteiro Lobato, Oswaldo Aranha ou Machado de Assis, personalidades que fizeram história na política e na cultura deste país.
Nos fundos, passando uma porta de molas no melhor estilo “saloon” de faroeste, a maior sala de sinuca que eu conheci. Pelo menos que eu conheci... E o mais engraçado, ou até desgraçado, o banheiro ficava após aquela gigantesca sucessão de mesas de bilhar. Triste é que quando se chegava lá, às vezes ainda tinha que se enfrentar uma fila para tirar a bendita “água do joelho”.
Não me lembro de ter saído do Lamas sóbrio, a não ser depois que casei e fomos algumas vezes jantar; algo bem mais civilizado. Naqueles tempos de antanho, geralmente comprava uma maçã, saia trôpego do local, e, sabe-se lá como, acordava em casa no dia seguinte. Porém, foram longas e acirradas discussões sobre o futuro do Brasil e do mundo. Muita briga com o pessoal do “partidão” a ouvir discursos do “Filósofo” em cima de uma cadeira naquele burburinho de vozes que só as casas noturnas têm.
Havia também os bares do Leblon e Ipanema. O Degrau, o Alvaro’s, o Jangadeiro, o Zepellin. Mais uma vez, as mesmas caras, os mesmos debates as mesmas propostas de uma época de filósofos e filosofadas. Uma época rica em minha memória.
(1) Esquerda “festiva” era aquela que vivia apenas de discurso, geralmente não militava, e se opunha ao regime e/ou sistema de forma descompromissada, em bares e festinhas.
(2) O Lamas mudou-se dali para a rua Marques de Abrantes, quando o prédio foi demolido. Até hoje serve o seu filé, que continua famoso, mas eu acho que não é mais como aquele. Ou será puro romantismo?
10 comentários:
Viva a vã filosofia...pensar livre é só pensar. Jonga que memória, só posso agradecer partilhar desses contos que trazem um tempo dos antigos, como dizemos. Mas as(os) personagens que você menciona são, acho eu, quase universais.Lembrei do Walter Benjamin e do flâneur em seus contos, segue um pedacinho:
"Uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou sem rumo pelas ruas. A cada passo, o andar ganha uma potencia cescente; sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina(...) aquela embriaguez anamnésica em que vagueia o flâneur pela cidade não se nutre daquilo que, sensorialmente, lhe atinge o olhar: com freqüencia se também se apossa do simples saber, ou seja, de dados mortos, como de algo experimentado e vivido".
Um domingo de contos, grande abraço.
Que bela e gostosa postagem.
Viajei nestas tuas reminescências de um tempo de boemia política pelos bares no Rio de Janeiro. Creio que a dita esquerda festiva tenha sido um fenômeno registrado em todo o Brasil. Esta esquerda que ficava acolherada nos bares da vida.
Era um tempo de conversas perdidas na madrugada onde se ficava charlando sobre assuntos, sempre os mesmos.
Este filé do Lamas me faz lembrar o nosso aqui do Barranco. Mas gosto mesmo é da Costela na Panela com Nhoque do Naval.
Belo este trecho de um conto de Walter Benjamin.
E quanto a filosofias e filosofadas, faz parte da vida. Afinal, a humanidade é antes de mais nada diferenciada pelo "pensar".
Pensemos.
Tentei rememorar alguns lugares que ia com freqüência na minha juventude naqueles "anos de chumbo".
Eu até não era um "festivo", militava. Mas como pequeno burguês, bem que me deliciava com aqueles papos e debates que varavam as noites.
O Lama's do Largo do Machado, vim a conhecê-lo apresentado por você em 1971, quando do relançamento de 'A pantera cor-de-rosa' ('The pink panther') no cine Copacabana. Fomos ver o filme e, depois, jantamos e tomamos alguns chopes no tradicional Lama's - acho que você estava a namorar nesta época. Frequentei muito, porém, o Lama's da Marquês de Abrantes e me lembro, como se fosse hoje, do 'fillet' com batatas fritas - estou vendo o prato na minha memória e enquanto escrevo este comentário sinto fome, estou esfomeado. O Lama's da Marquês de Abrantes, ainda que o peso da tradição do outro, era muito bom (ou é muito bom, pois acho que ainda existe). É o tal negócio: o chopinho carioca não tem semelhantes em outros estados (talvez em São Paulo em seletos bares). Não posso tomar um chopinho no Rio, porque, de imediato, tenho logo o desejo de beber todos os barris do bar. E interessante que, no Rio, qualquer boteco de esquina tem um chope bem tirado, pressão adequada, bigode, gelo nas serpentinas, etc. Em Salvador, difícil ir a um local onde se ache um chope decente. E não há uma 'cultura do chopp' como acontece no Rio. Nos últimos anos, ia muito ao Bacarense, Leblon. E também, neste bairro, ao Clipper. O chopp (prefiro com dois 'ps') carioca é uma instituição. Agora me lembrei que Vossa Excelência contou que existe um chopp de se tirar o chapéu em Beagá. Guardei inclusive alguns endereços de bons bares que me enviou ano passado. Beber, para mim, ainda que os inconvenientes e a possibilidade de um acesso mais rápido à morte, é um dos prazeres da vida.
O Cinerama foi um barzinho que acho que a maioria dos cariocas acima de 50 e que curtisse um pouquinho de cinema foi lá uma vez na vida pelo menos. Era o "point", era moda ir nele.
O Lamas até mudou com a saída do Largo do Machado. Não tem mais sinuca, e ficou bastante diferente apesar de ter levado peças de decoração inteirinhas do seu espaço anterior. E o filé deles, me perdoa mas eu ainda considero pra lá de ótimo. Deve ser romantismo seu.
Sim, André, o Lamas ainda existe e está com 134 anos de existência´.
Quanto ao chope do Bracarense é mesmo muito bom.
A questão de São Paulo. Lá tem chope de primeira qualidade também. Em muitos lugares. Fiquei lá em 2004 uns três meses a trabalho e tinha era chope bom...
Escrevo 'chope' porque tenho mania de aportuguesar palavras. É que nem 'blogue', eu acho que sou o único que escreve assim.
Como eu disse, JR, deve ser romantismo... e deve ser mesmo. O filé do Lamas ainda é bastante elogiado.
Meu Deus, não é que comentei na postagem errado. Fui olhar agora e verifiquei esso engano.
Mas continuo a dizer ( agora no lugar certo) que achei uma delicia a sua pensata filosofal deste domingo.
Gostei imensamente dos personagens e os bares do Rio naqueles tempos,com figuras da noite se exibindo com livros debaixo do braço só para dizer que são "os sabichões". E do filósofo e de seus discursos inflamados.
E gostei também do salão de sinuca do Lamas, da tabacaria e da banca de frutas que ficava na frente daquele bar.
Adorei tudo!
Falou, Maria.
Até já havia lhe respondido na outra postagem, mas fica aqui, mais uma vez o meu agradecimento por você ter gostado tanto de uma coisa escrita sem grandes pretensões, mas apenas com recordações de um tempo longínquo (cerca de 40 anos atrás), porém ainda bastante vivas em minha memória.
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