domingo, 11 de abril de 2010

Boccaccio 70, quase cinco décadas depois


Da esquerda para a direita: Marisa Solinas, Anita Eckberg (com Peppino De Filippo), Romy Schneider e Sophia Loren

Quando vi “Boccaccio 70” no cinema, havia sido cortado o episódio de Mario Monicelli.
Agora, revendo o filme em DVD, finalmente consegui assisti-lo. E não tinha conhecimento da razão de o terem cortado... Achava até que teria sido por motivos de censura (1), porem, o professor Setaro me esclareceu que foi devido ao tempo do filme que ficaria longo demais.
Inspirado no clássico “Decameron”, de Boccaccio, quatro grandes mestres do cinema Fellini, Visconti, De Sica e Monicelli, criaram uma comédia inesquecível em quatro episódios (2) abordando moralismo e puritanismo. A grande virtude deste filme foi a de reunir tão excelentes diretores ao mesmo tempo.
O mais rico em tudo isto é comparar num só filme as sutilezas e diferenças de estilo e pensamento de cada um dos quatro gênios.

No episódio de Monicelli “Renzo e Luciana”, com Marisa Solinas e Germano Gilioli, a divertida história de um casal da classe operária que tem de manter em segredo o seu casamento, para não perder o emprego. Um dia eles são descobertos pelo chefe e acabam despedidos. Está lá o dedo do realizador e sua crítica à sociedade. Bem ao seu estilo.

“As tentações do Dr. Antônio”, episódio do GRAAANDE Fellini e uma crítica mordaz à direita católica que o arrasou quando do lançamento de “La dolce vita”. Detalhe genial a sua perfeição em transformar Anita Ekberg (3) numa gigantesca criatura, somente usando ângulos como plogée e contre plongée e um cenário reduzido em escala.
Anita está belíssima, e Peppino De Filippo fora de série em sua performance no papel do “moralista” – imoral, como todos eles.

Visconti e a critica de um Materialista Histórico – mais conhecidos como marxista (4) – à decadência da aristocracia... Perfeito! O seu humor sutil e a beleza de Romy Schneider fazem de “O Trabalho” uma contemplação pitoresca do casamento. A vingança “explícita” de uma mulher às infidelidades do marido (Thomas Milian).

E, at last but not least, fechando com chave de ouro, “A rifa”, cujo prêmio é “apenas” uma noite com uma esplendorosa Sophia Loren, a exibir bondosamente o seu farto e generoso colo mediterrâneo. E tudo ao estilo inconfundível de De Sica.

É muito! É demais em qualidade... É arrepiante ver que um filme, 46 anos após ser realizado está ali, na sua frente com uma qualidade que põe no chinelo as “obras” (???) que se produzem por aí, às toneladas...
Quase cheguei às lágrimas pela emoção que isto me causou.

(1) Monicelli não era benquisto pelos generais de plantão por ter realizado “Os companheiros” (1963)

(2) Era muito comum na Itália nos anos 1960 realizar filmes com episódios de um ou mais diretores.

(3) La Eckberg foi uma das razões que provocaram grandes polêmicas em relação ao filme.

(4) Marx batizou suas idéias de Materialismo Histórico. E se opôs quando começaram a chamá-la de Marxismo.

10 comentários:

André Setaro disse...

O cinema italiano, por ter gênios em quantidade, vivia, nos anos 60, um período parecido com a Renascença em seu apogeu, e, por isso, deixou, em segundo plano, realizadores acima da média, excepcionais, a exemplo de Mario Monicelli, responsável por uma pequena obra-prima da comediografia mundial: "Os eternos desconhecidos" ("I soliti ignoti", 1956), paródia a "Rififi chez les hommes", de Jules Dassin.Além de "L'armata Brancaleone', 'A grande guerra', 'Os companheiros', 'Pais e filhos', 'Guardas e ladrões' etc, etc, e etc.

O produtor de "Boccaccio 70", temendo a duração excessiva do filme, vista a cópia final, que resultou num filme de mais de três horas, se viu obrigado a 'decapitar' um dele. Monicelli, por não ter o 'cacife' dos outros, foi o eleito para a crucificação. Mas acho 'Renzo e Luciana' melhor do que 'Il Lavore', de Visconti.

Em segundo plano ficaram personalidades de altíssimo nível cinematográfico: Valerio Zurlini, Francesco Marselli, Dino Risi, Damiano Damiani, Alberto Lattuada, Ugo Giorgetti, entre tantos.

Stela Borges de Almeida disse...

Incrível, que emociante ler estas notas num domingo cinzento e chuvoso numa cidade que virou uma terra arrasada. Devo confessar que estou rindo porque Boccaccio me inspira. Aliás sua descrição me faz rever os apontamentos de cinema especialmente os ângulos plongée e contra plogée que o Graaaaade Fellini obtém, além do mais a alusão ao colo mediterrâneo da Sophia Loren é demais, somente os sensíveis observam. Esta leitura num domingo de céu plúmbeo, lí o livro, imperdível também, mostram que o tempo mantém obras de valor. Um grande abraço.

Jonga Olivieri disse...

André, você tem toda a razão quando define aquele período do cinema italiano como uma Renascença para o cinema.
Você, aliás, não apenas em seu blogue (link na relação ao lado), como tambem em correspondências entre nós referiu mais de uma vez o fato.
Ao lembrar "Os eternos desconhecidos" que aqui no Brasil batizaram de "Rufufu", lembrou uma das melhores comédias a que jamais assisti. Um filme hilariante que reuniu atores do nível de Renato Salvatori e até o saudoso Totó... E cenas que jamais nos esqueceremos de um bando de trapalhões, que ao tentar derrubar uma parede para invadir um apartamento vizinho para realizar um assalto atrás de uma fortuna, vão parar na cozinha do próprio apartamento em que se encontravam.
Mas acho impossível eleger o “menos melhor”. Refiro-me ao episódio “O trabalho” em que Romy Schnaider prostitui-se ao próprio marido, um nobre italiano do rico norte da península como uma vingança; pois são todos eles excelentes e insuperáveis.

Jonga Olivieri disse...

Obrigadíssimo Stela por suas palavras sobre esta postagem. Mas é interessante pensar como a expressão “generoso colo mediterrâneo” é perfeita e adequada aos dotes de Sophia Loren e outras “mamas” italianas.
Se, como disse ao André é difícil localizar o “menos melhor” dos episódios, sem dúvida nenhuma considero o de Fellini o mais marcante... Claro que seguido (ou quase ao mesmo nível) de “A rifa” do incrível De Sica.
Não que os outros não sejam bons, mas Fellini e De Sica são ícones da cinematografia mundial, ambos ligados à renovação do cinema italiano que influenciou toda uma mudança em nesta expressão da arte, que, infelizmente passa por uma momento difícil no presente.
Certamente um filme deste — ou a simples recordação dele — ilumina qualquer céu plúmbeo.

André Setaro disse...

Mas isto não quer dizer que não aprecie 'Il lavoro', do grande Visconti, realizador que tem um de meus filmes preferidos em todos os tempos: "Rocco e seus irmãos" ("Rocco i suoi fratelli", 1960), entre outras maravilhas.

"Boccaccio 70" é um filmaço. O melhor é o de Fellini, com Anitona. Mas todos os outros respeitáveis. Visto hoje, como você fala, assombra pela constatação dos talentos dos quatro realizadores. E a constatação de que não se faz atualmente obras de tal quilate, de tal excelência.

Em 'I soliti ignoti', uma das melhores comédias que já vi, os ladrões, depois que arrombam a parede, ficam na cozinha e se deparam com um panelaço de 'spaghetti' e, então, sentam-se todos para comer (pois mortos de fome) e riem às bandeiras despregadas. Belo filme e com um grande humanismo também.

Jonga Olivieri disse...

Sei que você jamais desprezaria um filme de Visconti... Apenas quis dizer que todos são tão bons que é difícil se excluir algum.
Quando você se refere a "Anitona", lembrei também do “generoso colo escandinavo”. Mas Fellini brilhou em sua resposta aos críticos “moralistas” que o apedrejaram, usando a mesma atriz e um farto decote. Tal e qual em “A doce vida”.
Uma autêntica ‘vendetta’.

Ieda Schimidt disse...

Giovanni Boccaccio (1313/1375) escreveu O Decamerão que é considerado um marco divisor da ruptura entre a moral medieval e o realismo (o registro dos valores terrenos), pois nele não mais o divino, mas a natureza, dita a conduta do homem. É uma coleção de cem novelas divididos em Jornadas.
Como no caso de Fellini, a igreja Romana fez muitas críticas à obra.
Creio que tu podes enxergar a semelhança entre o propósito do filme e o original escrito por Boccaccio em 1350, na abordagem do realismo nos episódios desta Jornada do século XX, seis séculos após, pois tudo neste filme é ruptura na própria maneira de ser. Cada episódio (conto) tem uma estrutura crítica em relação à sociedade que rompe barreiras sociais.
Tenho uma edição especial em três tomos (1956) da Editora Martins, mas existem algumas mais recentes que podem ser encontradas, como a da Editora Itatiaia.

Jonga Olivieri disse...

Ieda, só me resta dizer que vou procurar a edição da Editora Itatiaia...

maria disse...

Que filme fantástico!
Vou procurar numa boa locadora, porque nas Blockbusters da vida não devo encontrar.
Quem sabe na Vanessa? Vou procurar!

Jonga Olivieri disse...

Mary, entendi o seu comentário até Blockbuster. De resto penso que "Vanessa" seja uma boa locadora de DVDs aí, certo?