domingo, 12 de outubro de 2008

Guaíba

Para dar uma pausa em crises econômicas e eleições mal resolvidas, republico no domingo este artigo, um ‘recuerdo’ postado em março de 2007 no Pensatas.

A primeira vez que fui à Guaíba, ainda era uma aventura. Antes de mais nada esclareço que Guaíba neste caso não é o rio gaúcho, e sim uma fazenda em pleno recôncavo baiano, dos meus primos de sobrenome Prisco Paraíso (1).
Uma aventura que começava na forma de se chegar até lá. A gente madrugava para ir até o “Cais do Mercado”, na cidade baixa de Salvador para pegar o “vapor”, aquele mesmo que o Caetano cantou, o de Cachoeira.
A embarcação singrava os mares, atravessando a Baía de Todos os Santos, e adentrava o rio Paraguassú numa viagem inesquecível. “Quando chegar no meio da baía, o navio vai balançar muito”, preveniu tia Edith, com o ar professoral que os seus cabelos brancos e um passado de muitas idas à fazenda lhe proporcionavam. Dito e feito, quando o paquete chegou ao meio da travessia, jogou pra dedéu.
Coisa mais linda! Quando chegamos ao rio Paraguassú, sua largura, sua grandiosidade. A beleza de uma natureza privilegiada às suas margens. Nunca posso me esquecer daquele primeiro encontro com uma verdadeira lenda familiar. Meu pai me contava, desde que eu era pequeno, as cavalgadas, os passeios que se faziam na Guaíba. E estava eu ali, a cada nó navegado me aproximando...
Finalmente chegamos ao lugar em que íamos desembarcar, a ilha dos Franceses, bem no meio do rio. Daquele ponto em diante, saíamos do vapor e passávamos para canoas que nos esperavam para conduzir à fazenda. E o medo? Eu, um bicho de cidade grande, ali numa piroga, as águas ao lado, na altura do peito. O corpo abaixo do nível delas. As mãos a tocar o caudaloso rio. A sensação entre a surpresa e o medo.
Dez, quinze minutos depois, outra escala. Chegamos numa vila à “beira mangue”, onde morava a população local. Palhoças, casinhas simples enfileiradas, dezenas de outras canoas quase encostadas umas às outras. E ao fundo cavalos nos esperando. Nunca havia andado a cavalo. Tudo para mim naquele dia era uma grande novidade. Montamos os animais e pusemo-nos vagarosamente, em fila indiana a seguir uma estrada, melhor dizendo uma trilha que nos levaria à sede da fazenda, à “casa grande”.
O caminho, aos poucos subia cada vez mais. A casa ficava no alto. Era uma vista deslumbrante. Abaixo um grande vale em que se via o rio, as ilhotas em seu meio, e, bem em frente uma cidadezinha chamada Santiago, justo na margem oposta. Mais ao longe, Maragogipe, cidade maior, mas que podia ser melhor vista à noite, pelas luzes. Naquele tempo, anterior à CHESF (2), a prefeitura desligava a iluminação lá pelas 10 da noite. E era um programa, todos ficarem na larga varanda da casa para assistir a esse espetáculo.
Os primeiros dias foram excitantes. Passeios a cavalo pela manhã ou à tarde. Passeios a pé, pelas imediações. O “poço” com o seu jacaré. Cheguei a vê-lo. Atiramos nele, eu e meus primos André, Bebeto e Tuca. Mas o filho da mãe mergulhou. E por falar em atirar, caçamos alguns “passarinhos”. Êta maldade! Somente meu primo Chico tinha a coragem de saboreá-los, devorando suas cochinhas assadas. “Coi” de lôco!
E saborear era a melhor coisa. Principalmente no almoço e no jantar. A criadagem preparava quitutes os mais variados, com requintes dos pratos típicos, como moquecas de sirí catado, xinxim de galinha, caudinho de sururú e por aí afora. Tudo sempre muito bem acompanhado de saborosíssima farofa de dendê.
À noite, sentávamos na varanda, antes do jantar, e tio João (3) comandava o espetáculo de comer ostras. Aprendi que ao abri-las, tirando do fogo, espremia-se o limão bem no meio da concha. Observava-se o seu movimento. Caso ficasse parada, podia jogar fora. Tinha que ser sorvida ainda viva, e para tal precisava contrair-se quando a acides do limão a atingisse. A princípio era estranho, mas como nunca tive preconceitos com comida, logo estava fazendo tudo conforme os conformes.
Depois do jantar, a fila para jogar com tia Maria e tio João partidas de “Palavras Cruzadas”. Aquele das pedrinhas, também conhecido como “Mexe-Mexe”. As partidas começavam lá pelas oito e terminavam quase sempre de madrugada.
Quem ganhasse ficava na mesa, o mesmo valendo para o dia seguinte. O problema era ganhar do tio João, cuja cultura e vocabulário iam muito além de nossos reles conhecimentos. Ao lado o dicionário da Língua Portuguesa. Não valia inventar palavras. Qualquer dúvida, um dos contendedores podia consultar o dicionário para comprovar se a dita palavra existia de fato. As regras eram respeitadíssimas. Não valiam nome próprio, nem verbos conjugados. Estes, só no infinitivo.
Tinha um detalhe. O tio César, marido de tia Edith, já falecido, havia construído com sua engenhosidade uma pequena hidrelétrica, apesar de ter se formado em direito e não em engenharia. Esta, lá pelas onze, onze e meia era desligada. Daí em diante o jogo continuava à luz de lampiões.
Hora de dormir. Hora de falar de fantasmas e aparições. Hora de falar de “mula-sem-cabeça”, de “curupira”. Hora de ficar com medo de adormecer, de se cobrir inteiro no quarto escuro, deixar só o nariz de fora das cobertas, apesar do calor reinante.
De manhã, galos cantando, tomava-se um lauto café da manhã, também regrado com quitutes bahianos, e mais ovos fritos, pães caseiros. Hummm, até lembrar dá água na boca. Em seguida começava tudo de novo.
Anos depois, morei em Salvador, no ano de 1982, quando fui trabalhar na DM9. Já casado, com meu filho à época com cinco anos. A Guaíba já não era mais a mesma. Para começar, a gente chegava lá de automóvel, parando-se entre a cozinha e a “casa grande”. Sinal dos tempos, tinha-se que implorar para alguém da aldeia ir fazer um “almoçozinho” pra gente. A peso de ouro. O progresso havia chegado, o sistema semi-feudal acabado. Era outra época. Por um lado, um tanto melhor. Mas, que ficava a saudade da fartura e dos quitutes de outrora, lá isso ficava.

(1) Meu avô paterno tinha muitas irmãs. Estas, ao se casarem adotaram os sobrenomes de outras famílias na Bahia. Como o acima citado Prisco Paraíso, e também Valente, Gordilho, Tourinho...
(2) Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.
(3) Tio João. Ou João Borges de Figueiredo, então deputado federal pelo PL, não confundir com o Partido Liberal, tratava-se do Partido Libertador. Depois, força da lei, transferiu-se para o MDB. Era casado com a prima a quem chamo “tia” Maria, irmã de tio César, este último casado com a prima dele e irmã de meu pai tia Edith. Tia esta que, aliás, em junho de 2007 completou um século de existência. Ufa!

11 comentários:

Ieda Schimidt disse...

Gostei muito das aventuras do guapo Jonga no Recôncavo baíano.
Até porque em março de 2007 eu ainda não lia o teu blog.
Mas falastes que a fazenda é cercada por mangues. Guaíba vem a ser o nome que se dá aos pântanos profundos.
Tem lá uma certa razão de ser, certo?

Jonga Olivieri disse...

O guapo viveu boas aventuras por terras guaibescas. Vou contar depois.
Mas, realmente o rio Paraguassú (pelo menos naquela região) é formado de braços que são mangues.

André Setaro disse...

A Guaíba era um paraíso administrada por Priscos Paraísos. Fui algumas vezes com Edith, a centenária, e César, quando tinha que se montar a cavalo para se chegar à casa grande. Depois, com a possibilidade de se chegar a esta de automóvel, a Guaíba foi perdendo seus encantos. Lembro-me que uma vez, São João, encontrei-me com você, Bebeto e Tuca em Cachoeira, e fomos todos pernoitar na fazenda. Estava, se não me engano, com uma namorada da época, e vocês com suas respectivas esposas. Velhos tempos, aqueles, e você 'pintou' o clima com muita propriedade. João Borges, grande figura, grave, a acentuar as sílabas quando falava, que se dizia deputado 'progressista'. Tinha como exemplo Josaphat Marinho, que procurava imitar. Josaphat, quando conversava, procurava 'virgular' a cada frase, outra grande figura, pois homem reto, probo, ético.

Anônimo disse...

Olha só, tenho a impressão que eu sou o mais antigo frequentador (palpitante) neste blog. Quero dizer, no antigo Pensatas. Mas me lembro de ter lido este seu post sobre a Guaíba na época em que foi editado pela primeira vez. Continuo gostando tanto quanto quando o li então.

Jonga Olivieri disse...

Eu me lembro desse nosso encontro. Que ano foi aquele?
Você namorava uma garota que estava a saborear maniçoba. E eu me lembro que ela falava sobre a receita do quitute.
Gostei do "paraiso" administrado pelos Priscos "Paraisos". Afinal de contas aquilo era um apraíso mesmo!

Jonga Olivieri disse...

Você, sem dúvida o é, JR. Pelo menos que eu me lembre, pois alguns nunca mais voltaram (pelo menos a postar comentários).

Anônimo disse...

Delícia viajar nas suas recordações juvenis. Me lembraram fatos de minha própria. Bem mais recente, acredito. Não que esteja lhe chamando de velho, mas porque sei que sou muito mais nova.
Você falou de maniçoba. Nós aqui também gostamos muito deste quitute de origem indígena e que a partir do Pará invadiu todo o norte e nordeste.
Que delícia. Mas é um perigo porque engorda muito.

Eliana BR disse...

Jonga,
que historia otima!
Vou pegar o google map pra localizar Guaiba.
E salve a Bahia, sinhô!
Bises,
Eliana

Jonga Olivieri disse...

Essa foi boa Mary, mas realmente eu tenho idade para ser o seu avô...
Quanto á maniçoba, vou até pesquisar, mas não sabia que vinha do Pará.

Jonga Olivieri disse...

Eliana,
Que bom que você gostou da história. Mas quanto à Guaíba, não acredito que encontre algo com este nome, pois é uma fazenda e não um município ou mesmo cidade. mas a maneira mais fácil de encontrá-la é procurar por Santiago no rio Paraguassú (não muito longe de São Félix e Cachoeira). A Guíba fica bem em frente.

alberto olivieri disse...

Guaíba uma palavra mágica, me recordo do primeiro dia em que aí fui.São as lembranças mais antigas de minha vida, as recordações são as primeiras memórias que ficaram pois o encanto desse encanto se relacionaram a fatos que me fizeram gravar na mente apesar de ainda estar com dois anos e meio de idade.Dezembro de 1950.
1- A primeira lembrança: Não me lembro de ter estado no vapor de Cachoeira com essa tenra idade, pois acredito que como o mesmo saia às 6 da manhã passei a viagem toda dormindo. No entanto quando a família se transferiu do vapor para um saveiro ao destino da Guaíba, me lembro de duas imagens: a bá bá de Lula fez a viagem toda com os pés dentro d'água cortando as espumas ao movimento do barco. Lembro-me também da merenda que minha mãe levou para a viagem: pão de Ló também me recordo da lata pois minha mãe a usou para guardar café durante muitos anos.
2ª lembrança: Ao chegarmos na praia onde aportamos havia dezenas de cavalos selados nos esperando para subirmos através da levada o morro alto de 150m onde ficava o Sobrado.Chorei muito pois queria montar no cabeçote do cavalo com meu pai mas o meu irmão Paulo recém-nascido já estava no seu colo. Desse trajeto não me lembro de nada provavelmente por ter adormecido aos braços de meu padrinho Cezar ninado pelo balanço do bucéfalo. De repente chegando ao alto do outeiro meu padrinho deve ter me acordado pois a imagem da casa grande ficou na mente gravada.
3ª Recordação: A imagem do berço que dormia, dividindo com outra criança talvez meu irmão Durval mais velho. Nesse berço me acordou Tereza para tomarmos leite cru no curral. Na volta do curral Chico enciumado por eu ter vindo no cangote do pai dele nosso querido tio João a força da minha tenra idade, chorou reclamando; talvez por isso a lembrança.
4ª- Lembrança: Atrás do altar da Nossa Senhora das Mercês da Guaíba, havia uma carabina escondida e como sou buliçoso meu pai me deu um carão por ter pego a arma,que foi levada para lá por um amigo de tio Chiquito comunista que ficou escondido na Guaíba apesar do dono da fazenda ser o secretário do Interior na época.
5ª lembrança: Teresa caiu sobre a cerca de arame farpado e depois o corpo dela ficou todo pintado de mercúrio e isso me impressionou.
6ª lembrança: Tio Cezar embrulhava os cajus ainda nos pés para evitar os bicos dos passarinhos.
7ª lembrança, retorno imediato pois foi encontrado um barbeiro sob o alarde de Teresa: Uma barata! E como la não havia essa praga viemos todos súbito de volta para Salvador.
8ª lembrança: Na canoa nosso pai nos deu linha para brincarmos de pescar sem o anzol, sob a liderança de Durval o mano com 5 anos na época. O que é interessante nesta imagem é que apesar de ter 2,5 anos eu já sabia o que significava pescar com toda clareza.
Me pergunto porque tenho lembranças vivas em minha cabeça dessa idade, será que foi porque só retornei a esse mundo encantado depois de 10 anos de idade pois meu pai tinha receio da mordida do barbeiro? Durante um intervalo de 8 anos Chico meu primo que continuou indo todos os verões me fazia guardar essas lembranças renovando-as na minha memória por eu estar impedido de voltar?
Meus amigos de infância Bacurau e Raimundo faleceram jovens vitimados da doença de Chagas.
Ai se eu não escutasse o que papai dizia...